A redução brutal no financiamento das bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, já esperada (mas não a esta escala!), abalou a comunidade académica e deixou-a justamente apreensiva relativamente ao futuro.
Uma visão superficial tenderá a ver nesta reacção um comportamento corporativo justificado. Se houver muito alarido, é natural que as pessoas se queixem, repetirá certamente alguém do governo diante das câmaras da televisão, como o fizeram durante e após as enormes manifestações cívicas contra as medidas governativas que lhes foram impostas. Afinal, no meio de tanto desemprego criado por esta crise da dívida (ou a pretexto dela), que têm os bolseiros e os “pós-doutorados” a mais do que os restantes funcionários públicos, empresários falidos e trabalhadores portugueses despedidos? Não têm o “direito” a sofrer com os cortes, como os outros?
Porém, se esgravatarmos um pouco mais, vemos emergir uma velha cisão na sociedade portuguesa sobre o papel das Ciências, das Artes, das Humanidades e das Tecnologias na criação de riqueza e no progresso social, em suma, da sua importância para um país que, até há bem pouco tempo, se encontrava imerso em pobreza e atraso. Curiosamente, isto acontece curiosamente no dia em que dois futebolistas excecionais são glorificados como heróis da pátria.
Um parêntese talvez (im)pertinente:
No século XIX, as nações orgulhavam-se dos seus cientistas, dos seus músicos e dos seus artistas como expoentes de civilização. Há dias, nas redes sociais, alguém em Espanha fez o reparo que aquele país se orgulhava dos seus clubes de futebol, que estão no topo da excelência performativa futebolística, mas que era indiferente ao facto de nenhuma das universidades espanholas se encontrarem entre as 200 melhores do mundo.
Na verdade, a cultura, a ciência e as artes não vistas como problema a não ser pelos seus profissionais e mais algumas “aves raras” que as usam por gratificação pessoal. Tendem a ser consideradas como despesa líquida no orçamento, apesar das medições econométricas realizadas correntemente para “os países mais ricos”, apesar destes países pensarem e medirem o retorno económico desse capital. O problema é tanto mais grave quando informa uma visão de/para Portugal que não partilhamos, governado por feitores profissionais de ricos e oligarcas, bem sustentados por um exército e força pública convenientemente guarnecidos, que lá acalmam a sua consciência com religiões de vário tipo e obras de caridade, distribuindo pelas paróquias tachos e benesses, sempre escassos, por via das suas igrejas-partido.
Neste caso, os cortes no financiamento destas bolsas são apenas mais um sintoma de inversão de um caminho que o país tardiamente começara a trilhar: o do investimento na educação, na ciência e nas artes, beneficiando do espaço económico e político em que se decidira integrar. Apresenta-se como mais um episódio do subfinanciamento do ensino superior e da investigação científica dos últimos anos. A par disso, e como pano de fundo, temos programas deprimentes de apoio social escolar que convidam os mais pobres cada vez mais à desistência do estudo. Outros cidadãos, com maior poder económico, são tentados a ir estudar para universidades estrangeiras bem cotadas nessa bolsa mundial da educação-negócio que são os rankings.
Estes sintomas claros ocorrem na altura em que o governo lidera um processo de reestruturação de um ensino superior em crise de crescimento. A este respeito, um artigo que saiu recentemente no Público* revela a excelência intelectual do debate público em Portugal protagonizado pela chamada "classe política" e pelos seus fazedores de opinião. Ficámos cientes de que "o ensino superior existe sobretudo para dar formação de qualidade aos estudantes, incentivar a inovação e dar à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável."
No cenário que nos é oferecido antecipadamente, o seu autor propõe que repensemos a missão da Universidade sob esta fórmula cativante (permitam-me que use uma expressão tão cara à tecnocracia do anterior regime). E são opiniões fundadas nos resultados de um estudo encomendado que, segundo parece, vem corroborar em muitos aspectos os factos e as crenças de um jovem que conheço e que, por sinal, conduz uma empilhadora numa empresa industrial.
Eu acreditava (é um voto de fé) que a Universidade deveria ser um centro de criação/produção de conhecimento científico, artístico, humanístico e técnico e que, por isso mesmo, a sociedade a encarregava da missão de formar os seus cidadãos ao longo da vida, atribuindo-lhes a faculdade de atribuir títulos académicos. E que esses títulos acreditavam publicamente ao longo da vida as exigentes competências adquiridas na academia. Ora, essas competências têm sido postas em causa diretamente pelo governo (veja-se o caso recente dos professores mais jovens) e pelos empresários (por exemplo, na área da saúde privada parece que preferem contratar médicos e enfermeiros estrangeiros; na assistência social, usam raparigas brasileiras para cuidar de idosos; na área dos serviços financeiros, contratam informáticos "brasileiros", etc., etc.) numa saudável lógica convenientemente (des)regulada. Leio nos estatutos da minha universidade: a "Universidade de Évora (...) é um centro de criação, transmissão e difusão da cultura, da ciência e da tecnologia, que, através da articulação do estudo, da docência e da investigação, se integra na vida da sociedade".
Em lado nenhum se diz que cabe às universidades criar emprego. O bom senso diria que cabe à sociedade criar riqueza e ao poder político criar condições para que isso aconteça.
Ora, de acordo com a opinião daquele deputado do partido que se diz social-democrata, parece que "urge desenvolver reformas [no ensino superior] que aumentem a qualidade, a competitividade e a eficácia do sistema" tendo em conta o tecido empresarial português QUE EXISTE. É fácil perceber que, atendendo ao nível de sofisticação científica e técnica das competências que são exigidas pelos empregadores nas ofertas públicas de emprego que têm existido na região e no país, bem como ao nível das remunerações que são atribuídas, que o modelo virtuoso do triângulo “qualidade, a competitividade e a eficácia” será algo parecido com o antigo colégio do Padre Alcobia de Ferreira do Alentejo. Era uma venerável instituição em que os professores eram bastante flexíveis, e bem supria as carências de formação daquele município até à “engorda do Estado” realizada depois de 1974.
Sejamos claros: para que serve gastar rios de dinheiro a produzir mestres e licenciados, ainda por cima oriundos a maior parte oriundos da ralé, se depois "não sabem trabalhar" em "centros de atendimento telefónico", como caixas de hipermercado, guias turísticos, serventes de café e de hotelaria (um ofício em vias de extinção), centros de massagens, etc. por 500 euros / mês ? E para que serve aos nossos jovens investir na sua formação se os sinais que lhes dá o poder político não apontam para outros caminhos que não sejam esses... ou a emigração? E ainda por cima sem capacidade creditícia para recorrer ao generoso financiamento bancário para continuar a estudar?
Com a retórica adequada, com o bombardeamento insistente nos media, com as medidas governativas graduais adequadas, invocadas em nome de uma qualquer emergência nacional, estou convicto que lá chegaremos... No que respeita aos institutos instalados na província, basta descobrir as vocações das regiões (a do Alentejo era o trigo e a cortiça, não é verdade?) e promover o enquadramento adequado. E quem estiver mal nessa nova espécie de escola técnico-profissional do “ensino superior”, a ministrar " formação de qualidade aos estudantes", irá sair (por via da reforma ou da "mobilidade") ou adaptar-se certamente. Assim, depois de umas décadas a promover o "sucesso educativo" no ensino básico e secundário (e que já chegou à universidade!), os professores universitários irão promover a "formação de qualidade aos estudantes" (com a ciência e as artes caídas dos céus certamente, ou dos manuais ingleses vertidos na língua pátria, mais ou
menos adaptados e explicadinhos pela sua autoria lusa), incentivando a inovação (reduzida assim ao engenho dos curiosos e analfabetos funcionais e à retórica que os portugueses sempre souberam usar para construir a sua própria realidade mítica) e dando "à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável" (por via da redução das "despesas" com as reformas, por falta de sustentação económica, e com as gorduras do Estado que todos sabemos onde estão).
É o que se está a fazer. Voilá!
Paulo Guimarães
(16.Jan.2014)
*http://www.publico.pt/sociedade/noticia/ensino-superior-jovens-desconfiam-e-empresas-nao-acreditam-1619618?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+PublicoRSS+%28Publico.pt%29
Sem comentários:
Enviar um comentário