Contribuidores

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Imaginemos um pouco o que poderá ser o ano de 2035

Os nossos netos serão adultos, haverá transporte público pesado até Loures e o aeroporto estará em Alcochete. Por seu lado, funcionará rotineiramente o comboio TGV para Madrid e a Europa… mas não para o Porto, por desentendimentos internos e por um governo de Lisboa ter acabado por substituir os velhos comboios Corail e os Pendolino por tecnologia chinesa.
A indústria aero-espacial continuou a estar “na ponta” do progresso técnico (e na posse de apenas meia-dúzia de grandes potências mundiais) mas as bio-tecnologias mantiveram o seu imparável desenvolvimento, com grandes impactos na vida social e acesos debates nos planos filosófico, ético e religioso. 
Um novo salto tecnológico chegou com a invenção de “baterias sem peso” que permitiram a utilização de motores eléctricos em grande número de novas aplicações, incluindo os veículos automóveis, mas necessitando de um aumento considerável da capacidade de produção eléctrica instalada, o que só foi possível com um retorno em força à energia nuclear, com dispositivos de segurança melhorados.
A IPIS (International Police for Informatic Security) continua a recrutar agentes em todo o mundo e avançou a proposta de criação de uma instância judicial supra-nacional para julgar este tipo de crimes.
Em Portugal operou-se finalmente uma profunda reforma constitucional, de cariz presidencialista, o que levou certos analistas a falarem numa “4ª República”, e o PCP ainda conseguiu eleger 2 deputados nas últimas “legislativas”. Enquanto isto, recorda-se o tempo em que uma tal Hillary Clinton foi a primeira mulher eleita para a Casa Branca e a França teve o seu primeiro presidente negro retinto. Grande novidade, com poucas consequências foi a queda da monarquia inglesa, mais por falta de intérpretes com qualidade do que por convicções republicanas: o speaker da Câmara dos Comuns faz agora esse papel protocolar e a visita ao palácio de Bukingham figura em todos os roteiros turísticos.
Prenhe de consequências foi contudo a perturbação que percorreu a Espanha quando se declararam independências unilaterais de algumas das suas nacionalidades, acabando porém por a situação se estabilizar sob uma híbrida fórmula federal, com a qual Portugal tem conseguido manter boas relações e sempre intensas trocas económicas.
Já Angola entrou em nova fase de crise e desagregação, agora pela chegada de influências políticas islamitas radicais que nunca tinham aproximado o território mas que foram ultimamente progredindo para sul desde a África central e a bacia do Níger.
E a China viveu igualmente uma fase de grande convulsão, que afectou a economia mundial, mas que acabou por permitir o reconhecimento no país do pluripartidarismo e das liberdades civis, mas com o pragmático e “confucionista” partido comunista (com este ou outro nome) a deter sempre as rédeas do poder, embora cedendo quanto a ambições territoriais na sua periferia e tendo sido obrigado a reconhecer e aplicar normas internacionais de protecção climática e ambiental.
Também as regras internacionais da OIT e da OMC acabaram por fundir-se entre si, daqui resultando o que alguns chamaram o “toque de finados do direito do trabalho” mas também novas exigências quando à qualidade da produção de bens, combatendo a espionagem industrial e o dumping social. Como “mínimos” universais, as grandes potências e a ONU acabaram por adoptar, depois de farta discussão, uma “tábua de garantias” contra a exploração económica e a exclusão social, e protegendo a diversidade cultural. O que se mantém em aceso debate nestes areópagos é a forma de tornar eficazes estes novos princípios.   
Finalmente, a União Europeia conseguiu superar as suas crises, concentrou as suas instituições políticas em Bruxelas (ficando Estrasburgo como “sede cultural”) e adoptou um figurino de “confederação de estados” com um governo saído do parlamento europeu. O “sonho europeu” recuou em certos aspectos (com Portugal, por exemplo, a conseguir tirar melhor proveito negocial e estratégico da sua “área atlântica”), mas preservaram-se algumas políticas comuns e as liberdades de circulação interna, unificando-se todas as representações diplomáticas exteriores e existindo agora uma segurança-e-defesa mais integrada. Mantém, com dificuldade, o estatuto de grande potência (sempre com problemas de identidades sócio-culturais muito diversas no seu seio), a par dos Estados Unidos, da China, da Rússia, da Índia, da África-do-Sul e do Brasil – os “sete mais” da época –, o que fornece aos portugueses o motivo de orgulho de terem “um lusófono” colocado em tal galeria. O perigo do radicalismo islâmico foi esconjurado, mas a influência cultural desta grande mancha civilizacional mantém-se e talvez esteja em crescimento, o que constitui tema central das discussões internacionais, nomeadamente nas Nações Unidas, cuja reforma mais profunda continua à espera de melhores dias.
JF / 30.Dez.2015

domingo, 20 de dezembro de 2015

A Ibéria numa encruzilhada, a Europa numa embrulhada

Teresa de Sousa procura muitas vezes enfatizar o défice de liderança que tem afectado os últimos anos da União Europeia para explicar as suas dificuldades. Temo que, por vezes, a analista exagere a importância deste factor, embora ele não seja despiciendo. Mas, tal como Jorge Almeida Fernandes e muitos outros celebraram a reconversão realista do primeiro ministro grego Tsipras, também aquela é das que têm chamado a atenção para a evolução positiva do pensamento da Srª. Merkel em matéria de política externa (Público, de 2.Nov.2015).
A hipótese de integração da Turquia na EU já levantava fundadas dúvidas: estávamos a integrar nos padrões de liberdade e democracia ocidentais um país-charneira (antigo império que chegou a dominar por séculos uma boa terça-parte do continente europeu), crucial para influenciar positivamente todo o Médio-Oriente? Ou estaríamos a abrir a porta a uma doce subversão dos nossos valores por via de uma bomba demográfica irreprimível, face a uma sócio-cultura identitariamente bem diferenciada, para mais quando o estado turco é desde há anos dirigido por um partido islâmico que, embora moderado e até agora respeitador do pluralismo político interno, não hesita em empregar a “maneira dura” para com a sua minoria curda e outros opositores? É provável que a pertença à NATO (ditada por evidentes razões geoestratégicas, face à URSS) tenha inibido durante décadas este país de se lançar em aventuras na região (salvo um pontual desentendimento militar com os gregos) e, com a sua estabilidade, não ter lançado alguma acha adicional na fogueira árabo-israelita-ocidental. Mas o tempo da Turquia militarizada e não-confessional dirigida pelos herdeiros de Ataturk já lá vai e dela só sobrou a sua potente força bélica, enquanto a sociedade se tornava mais dividida, em particular entre as camadas laicas-urbanas aspirando ao clima de liberdade do Ocidente (como os promotores das “primaveras árabes”) e as imensas massas de povo sequiosas de alguma segurança e mais consumo, mas tradicionais nos seus modos de vida (civil e religiosa), e por isso susceptíveis de serem arrastadas por grupos políticos radicais para projectos pouco consentâneos com os que vigoram no espaço europeu.   
A União Europeia adiou sine diae essa possibilidade. Mas agora defronta-se com o facto iniludível de a Turquia ser o principal guarda-fronteira da entrada na Europa de centenas de milhar de refugiados e migrantes islâmicos (exigindo um preço por este serviço) ou, à boca pequena, de lhes indicar as rotas da Grécia e dos Balcãs para a miragem da Europa rica e que “pode pagar”. As eleições gerais de 1 de Novembro permitiram a Erdogan recuperar a maioria absoluta no parlamento mas não evitaram a permanência ali de uma representação da minoria curda, enquanto no terreno o Curdistão turco (e a bordadura adjacente sírio-iraquiana) voltou a ser palco de confrontos militares entre o exército e os guerrilheiros independentistas (do PKK ou outros), mesmo ao lado da frente de guerra muito complexa que se trava no espaço ocupado pelo Daesh (o chamado “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”), abrangendo grande parte da Síria e o noroeste do Iraque.
A Rússia de Putin, que parece jogar forte na sua fronteira sudoeste, tem vindo a acusar Ankara de complacência ou mesmo de cumplicidade com estes facínoras sunitas pelo combate que fazem aos curdos (sempre a bête noire do poder turco) sobretudo porque não quer perder o ponto-de-apoio aeronaval que os Assad lhes permitiram ter directamente no Mediterrâneo, além de recear a efectiva constituição de um estado islâmico radical em toda esta região que talvez viesse a encurralar o Irão xiita (por via de uns talibãs triunfantes no Afeganistão e de uma queda do Paquistão em maior caos) contando com o apoio dos países produtores de petróleo da Arábia e do Golfo e o incentivo espiritual do seu wahhabismo. E neste tabuleiro instável que, vistas as lições do passado recente, os Estados Unidos do presidente Obama mostram cada vez menos vontade em empenhar peças fortes (sempre caras, financeiramente e em termos de opinião pública interna), sem deixarem de acautelar os seus interesses energéticos e de vigiar as ambições e avanços efectivos das maiores potências da região, incluindo naturalmente a Rússia.
Depois da sabotagem do avião de turistas vindo de Sharm-El-Sheik, dos atentados terroristas em Paris de 13 de Novembro e da tomada de reféns de Bamako, a França, a União Europeia, os Estados Unidos e a Rússia terão decidido elevar o nível do seu combate a estes radicais islâmicos e melhorar a coordenação das respectivas acções, não pondo em causa a perspectiva de acolhimento das centenas de milhar de pessoas que estão afluindo à Europa, entre refugiados de situações de guerra aberta e emigrantes de zonas paupérrimas ou instáveis de África e do Médio-Oriente. Mas é uma coligação frágil, dados os interesses contraditórios existentes no seu seio.
Estes dois fenómenos constituem, juntamente com o estado da economia financeira mundial, as questões mais graves e desafiantes do nosso futuro imediato e a médio prazo – enquanto no longo-prazo se mantêm indecisos os problemas climáticos e ambientais, o controlo das situações conflituais internacionais e a necessidade de um mais rápido e justo desenvolvimento para a metade mais pobre das populações do planeta, concentrada na América Latina, na Ásia e em África.
Para o nosso velho continente (e ao contrário do que alguns defendem), não se trata de fazer escolhas dicotómicas entre a “fortaleza Europa” e a “solidariedade”; ou entre “a austeridade” e “os países do Sul”. Vai ser preciso fazer ambas as coisas: incrementar a segurança (externa e interna) e, simultaneamente, reforçar o bom acolhimento dos forasteiros, aceitando a diversidade mas impondo a integração; controlar melhor os equilíbrios económicos, a despesa e o crédito e, ao mesmo tempo, unificar certas políticas em todo o espaço da UE – mas assegurando mecanismos de informação pública e de legitimação e escolha democrática para as grandes opções de política internacional e para a sua mais eficiente aplicação prática. Por exemplo: um “imposto europeu” pago directamente pelos cidadãos e empresas para alimentar um orçamento comunitário com algum significado económico; um intelligence e uma força militar conjunta permanente; alguma unificação de sanções penais; e maiores poderes para a Comissão Europeia, responsável pelo “governo da União” perante o Parlamento e o Conselho (europeus), deixando a este último órgão um papel mais parecido com o de uma “câmara alta” ou, melhor, de um “conselho de nações”. Mas como será isto possível com opiniões públicas desorientadas e lideranças políticas nacionais divididas e cada vez mais desafiadas por forças extremistas de direita?   
Concordo com Clara Ferreira Alves quando diz que o mundo mudou com o 11 de Setembro de 2001(suplemento ao Público, 11.Dez.2015). Apesar de, por vezes, me irritar a petulância e ligeireza com aborda oralmente certos assuntos, louvo-lhe a coragem de uma afirmação deste tipo, sem cair em outros alinhamentos automáticos de “recuo” ou fuga-para-diante. Confesso que só li superficialmente O Choque de Civilizações de Huntington mas parece-me que alguns comentadores ainda o leram menos e, apesar disso, o recusam porque… “cai bem” dizê-lo. Pela minha parte, acho que muito há ainda a fazer no que toca à cidadania e ao controlo social de certos poderes (novos ou herdados do passado); que a noção de Ocidente ganhou nova pertinência no século XXI; que a abertura ao mundo e à diferença é uma das suas marcas distintivas; que esse património cultural ocidental deve ser defendido de maneira adequada; e, por fim, que a construção de uma Europa-de-nações é um projecto pioneiro e interessante que justifica redobrados esforços para seguir adiante e não soçobrar perante as dificuldades actuais.      
Os esquemas de representação mental a que estávamos habituados na análise dos conflitos e relações internacionais (do género “simetria” ou “assimetria”, “mundial, regional ou local”, “segurança versus defesa”, etc.) encontram-se hoje baralhados pela diversidade de agentes, motivações e objectivos perseguidos, e pela compressão do tempo e do espaço – podendo este último ser simultânea ou conjugadamente “pontual” e ubíquo. Por isso, perderam eficácia compreensiva (e ainda menos explicativa) categorias como imperialismo (na versão mais recente de um Negri) e outras imbuídas de marxismo, ou ainda a polémica noção de “fim da história”.
Em todo o caso, para pessoas com a nossa memória histórica, causa impressão ver soldados de camuflado e béret rouge armados patrulhando as ruas de Paris, como se fosse a Argel das bombas em 1957 sob as ordens do general Massu. Afinal, para que mundo estamos nós a encaminhar-nos?
O Egipto só travou (por agora) o avanço do islamismo radical com o regresso em força do exército ao poder, cujo armamento e benesses são pagos pelos americanos. Virá o Ocidente a fazer o mesmo com a Turquia (para o que parece ser já tarde demais)?

O acordo climático agora obtido em Paris dá-nos alguma esperança de que um novo caminho possa ser trilhado ao longo das próximas décadas nos modelos de exploração energética, de produção industrial, de concentração urbana, de veículos de transporte e de consumo social. Mas será um processo difícil, cheio de contradições, em que uma consciência mundialista e de longo prazo (mas com sentido prático e sem fundamentalismos) terá de ser capaz de vencer inúmeras etapas e conjunturas conflituais. Em todo o caso, saudemos a unanimidade agora alcançada que, mesmo com as ambiguidades que encerra, constituirá a melhor forma de pressão contra os desvios e justificações de incumprimento, que não hão-de faltar. Em especial, esperemos de sejam travadas as tentativas de “mercantilização das poluições”, em que se vende aos países mais pobres os “dejectos” da nossa civilização material, bem como as tecnologias depredadoras do ambiente que as regulamentações protectoras já não consentem nos países ricos. Mas, além das transferências em investimentos e ajudas às zonas mais carenciadas do planeta, vai ser necessário despender muito dinheiro em investigação e desenvolvimento (em vez de consumo) para lograr essa desejável mudança de paradigma económico. E que os “capitais à solta” não baralhem tais esforços nem governantes corruptos e irresponsáveis se permitam aventuras com trágicos desfechos.

Espanha, 20 de Dezembro. Como se vinha anunciando, os “partidos do sistema” resistiram ao assalto dos “alternativos” e o voto regional/nacional de catalães e bascos nada trouxe de novo. Mas o xadrez parlamentar ficou muito alterado, sendo agora múltiplas as combinações e arranjos para encontrar uma solução mínima de governabilidade. É provável que o Podemos!, liderado por um esquerdismo parecido com o Siriza ou o nosso BE, fique por agora arredado do poder – a não ser que o exemplo português consiga suscitar em Madrid uma milagrosa união de esquerda. Mas o Ciudadanos, com postura mais centrista e desideologizada, pode também – tal como já aconteceu no passado (e talvez se repita) com as representações bascas e catalães – determinar muito os futuros governos. Simplesmente, cada um destes actores políticos visa objectivos de médio-prazo de natureza muito diversa: acossados, PP e PSOE tentam guardar a sua influência na sociedade, na opinião pública e nas instâncias descentralizadas do Estado; os nacionalistas querem avançar no processo autonómico ou mesmo alcançar a independência política; os “esquerdistas” querem o que sempre quis o radicalismo socialista (aguilhoar a luta-de-classes e alargar o Estado social); e só do Ciudadanos se pode esperar alguma novidade (incluindo o seu rápido esgotamento, por falta de suporte doutrinário). Como não há hoje indícios de disposição para acções violentas (as da ETA terão bastado), tudo deve jogar-se no campo da manobra política parlamentar e comunicativa, e talvez também das grandes manifestações de rua – pelo que o terreno constitucional (e o papel do rei: uma grande incógnita) poderá vir a constituir um espaço de afrontamento muito focado e crucial.
Nestas condições, dificilmente a Espanha exercerá no tabuleiro europeu uma acção de primeira grandeza (a não ser pela negativa). Por isto, o binómio franco-alemão terá, não só de fazer face, sozinho, à coorte dos “países periféricos” (cada um puxando para seu lado), como terá fundamentalmente de negociar com o Reino Unido a permanência deste na UE. Um grande e desafiante “bico de obra”! 
Por último, em Portugal as perspectivas eleitorais para escolher o novo inquilino de Belém parecem já “jogos feitos”. Depois de um contabilista, teremos provavelmente um florentino a reger esta orquestra mal afinada do sistema político português. Oxalá desta vez sem “banhadas” e não obstaculizando as mudanças que serão cada vez mais indispensáveis. 
Tudo isto está ligado, embora seja conveniente conhecer minimamente cada um destes processos de per si para se ter um entendimento mais aproximado e menos fantasioso do que vai determinando a vida das sociedades e, em alguma medida, as nossas próprias vidas.
JF / 20.Dez.2015

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Avanços e controvérsias culturais


Apesar de todos os defeitos e deficiências que se possam apontar ao nosso viver actual, é talvez na esfera da cultura que melhor se podem constatar os progressos feitos pelas sociedades modernas ocidentais – sem falar, é claro, do aumento do rendimento económico e da disponibilidade de bens e serviços para a maioria da população.
Desde logo, a maior escolarização induz, se não hábitos, pelo menos possibilidades de leitura e de ajuizamento próprio entre variáveis, que são ingredientes básicos do conhecimento e do apuramento de sensibilidades menos evidentes.
Em segundo lugar, em cerca de um século, criaram-se poderosas máquinas de difusão estética e cultural aptas a estimular nas classes médias e populares uns padrões determinados de públicos adeptos, bem diversificados entre si, mas acedendo pela primeira vez em massa a certas fruições. Um exemplo: se a música tinha no campesinato uma tradição secular, baseada no trabalho e em vivências comunitárias, as músicas urbanas suplantaram e destruíram tal cultura, pela via de identidades bairristas, primeiro, e maciça difusão sonora pela rádio e indústria discográfica, depois, e finalmente pela televisão e outros meios mais recentes de registo e reprodução áudio. Mas alargaram porém enormemente o universo dos ouvintes apreciadores e também o número e a variedade dos artistas e dos géneros musicais, passando a haver canções que se internacionalizaram e foram cantaroladas por gente de muitos e diversos países.
Neste sentido, um salto maior foi dado nos anos de 1950-60 quando chegou a moda do rock e da pop, e das “bandas” de quatro ou cinco executantes, que se agitavam em gestos frenéticos. Não por acaso, estamos a citar palavras inglesas sincopadas que, respectivamente, fazem referência à “pedra rolada” (e aos instintos mais genuínos dos homens-das-cavernas) e a uma música “popular”, que quereria significar “urbana” e “não-erudita”. Isto é: estávamos perante a irrupção de uma expressão de cultura juvenil (necessariamente irreverente) e de gente habitando os subúrbios das cidades, que queria justamente demarcar-se dos núcleos onde se concentravam os poderes (político, financeiro e de gosto requintado). Como essa era a situação comum em quase todos os países do mundo já medianamente desenvolvidos, gerou-se um fenómeno de contágio e identificação semelhante àquele que, um século antes, tinha querido apelar a “proletários de todos os países, uni-vos!”, agora transformado em: “jovens de todas as condições, gozemos!”. E foi por isso que o eco chegou, com poucas décadas de atraso e com as naturais adaptações e sincretismos locais, mesmo aos países do “terceiro mundo”, tornando o fenómeno verdadeiramente universal, numa comunhão emocional que nenhuma religião houvera conseguido ao longo da história.
No caso português, é um facto que o período de liberdade e democracia que vivemos desde os anos 70 permitiu um enorme desenvolvimento de toda a sorte de música popular, sem qualquer medida comum com o “pirosismo nacional” das décadas anteriores. Têm emergido compositores, poetas e intérpretes, vocais e instrumentais, de enorme qualidade, configurando uma “música pop portuguesa”, estreitando laços com o passado mais longínquo ou com os ritmos africanos, ensaiando novos arranjos e sonoridades e até resgatando o fado dos piores vícios em que estava metido.
A música dita clássica ou a ópera também alargaram as fronteiras dos seus públicos (eruditos ou elitistas), mas sempre em clara perda relativamente à supracitada música popular urbana, e ainda que o tivessem feito com recurso a formas musicais híbridas e de transição como a opereta, o “musical” ou a ópera-rock e embrenhando-se na transgressão cénica das convenções tradicionais (transfigurando os cenários e o guarda-roupa, banalizando a indumentária dos músicos, transportando-se para novos espaços, permitindo as transmissões televisíveis, etc.).
O teatro, que teve épocas de glória entre meados do século XIX e meados do século XX, estagnou depois e entrou em declínio perante as novas formas de arte de massas, refugiando-se no intimismo e no experimentalismo das interacções humanas, tão do agrado de certas minorias vanguardistas e de psicólogos (que, como os padres-confessores, gostam de nos espreitar a alma), mas alienando os grandes públicos urbanos (de classe média e populares) que haviam feito o seu sucesso.
Há raríssimas excepções, mas os artistas sofrem em geral do mal de um ego incontrolado. Entre os escritores, ainda podemos encontrar gente como os poetas António Ramos Rosa ou Herberto Helder, completamente avessos à publicidade pessoal. E há decerto bons criadores cujos textos nunca saíram da sua gaveta e por isso nunca chegaram a ser obras – para já não lembrar o inacreditável caso de Fernando Pessoa, que escreveu o que escreveu… “para o baú”. Este será talvez o mais extraordinário exemplo do anti-artista.  
Mas nunca como no nosso tempo estes criadores foram tão explorados publicitária e mediaticamente, através da idealização da sua “imagem”. O star system, que se iniciou na América do cinema, estendeu-se rapidamente à canção, ao espectáculo desportivo, aos “modelos” (vestimentários), aos artistas plásticos, aos entertainers, mesmo aos escritores, etc., e nele ocupam os políticos também um lugar indispensável. Todos devem hoje ser considerados como integrando, em alguma medida, o chamado show buzz. 
Se a função de exemplo e imitação mostra eficácia na multiplicação da descoberta de talentos que de outra forma permaneceriam apenas potenciais, também se torna por vezes insuportável o endeusamento que actualmente é feito, insistentemente, de muitas destas personalidades. Decerto que elas revelam capacidades fora do comum para terem atingido tal estatuto, mas essa focagem dos holofotes da fama obscurece o esforço persistente que o ajudou a construir (esse, sim, digno de ser louvado), e também quase sempre o trabalho colectivo (das equipas de apoio à produção e responsáveis pela “promoção”) que permitiu a emergência da obra.
Naturalmente, aos artistas assim projectados no imaginário de milhões de fans (que é, não o esqueçamos, a abreviatura inglesa de fanáticos), cai maravilhosamente bem este engrandecimento do seu ego (quando têm estrutura psicológica para tal, quando não quebram como o Fernando Mamede, ou acabam como a Cândida Branca Flor ou a Maryleen Monroe). E são então chamados, com o microfone à frente a boca, a pronunciarem-se sobre qualquer coisa, desde o que dominam mas é irrelevante até ao que desconhecem em absoluto. Mas quando o exagero ultrapassa certos limites, apetece dizer: “Óh homem (ou senhora), cante! (ou pinte!, ou faça o que sabe fazer excelentemente). Mas, por favor, poupe-nos às suas opiniões...”
No século XX, a liberdade e as novas tecnologias permitiram a criação e o desenvolvimento exponencial de novas formas de arte e cultura. De certo modo, a fotografia veio concorrenciar a pintura, e a escultura teve que se desdobrar em novos objectos, multiformes e de “perenidade variável” que vão hoje desde as “instalações”, ao uso de materiais pobres ou à própria arquitectura (enquanto grande esforço de “esculpir no tecido urbano”). Mas o cinema foi sem dúvida a arte que mais revolucionou o panorama cultural audiovisual contemporâneo, com os seus “sub-produtos” que foram as “séries” e as novelas televisíveis. Como em tudo o resto (mas com efeitos sociais multiplicados), existem em todos estes campos artísticos e de produção cultural obras-primas geniais, sucessos-de-bilheteira, ensaios arrojados (incompreendidos no seu tempo) e fancaria sem qualidade, só para exemplificar o mau-gosto ou servir projectos inconfessáveis. A educação dos públicos é então um factor importante para se perceberem melhor estas destrinças.  
Com a literatura, estamos, apesar de tudo, num outro patamar. A invenção técnica da imprensa, a difusão moderna do jornal e do livro, a escolarização e a burocratização das administrações públicas constituíram passos decisivos a nossa actual civilização do escrito, onde a criação literária ficcionista e mesmo a poesia puderam medrar, suscitar autores e alargados públicos leitores amadores de arte. É este “império da escrita” que talvez se encontre hoje ameaçado perante a concorrência avassaladora do audiovisual. A beleza da linguagem escrita – mesmo considerando apenas os nossos melhores escritores e poetas modernos –, para depois ser lida pausadamente e com ponderação, transmite ao leitor momentos de fruição inigualável, algures entre o sentimento e a imaginação. Até na discursiva parlamentar havia elegância quando, com voz apropriada, alguém exclamava, virado para a bancada oposta: “Vossa Excelência é uma refinadíssima besta!”. Mas esse tempo parece ter acabado.
A aventura humana irá continuar, mesmo porventura para além da “era do papel”. Mas como não podemos imaginar como será – e não há qualquer garantia que seja melhor – cumpre-nos a nós, supostos prosélitos da criação e da descoberta, o ingrato papel de velhos do Restelo, chamando a atenção para o que de maravilhoso e excelente tem sido produzido nestes últimos séculos no domínio da cultura e que pode jamais se repetir.
A erudição é uma qualidade pessoal excepcional que só alguns alcançam. Quando esse saber não fica fechado apenas entre pares e é difundido sem discriminações a quem é capaz de o acompanhar – como é, por exemplo, o caso dos artigos na imprensa que António Valdemar nos vai oferecendo, sobre acontecimentos ou personalidades da história e da cultura –, então somos todos nós, simples mortais, que ascendemos momentaneamente a patamares mais altos, lastimando embora que não possamos ser acompanhados pela maioria. Mas não há dúvida que o “progresso” existe, no sentido em que os horizontes culturais do grosso da população se tem vindo sempre a alargar, com a alfabetização, primeiro, a escolarização, depois, e na nossa contemporaneidade com a espantosa difusão dos meios audiovisuais, embora aqui de maneira mais complexa ou contraditória.
JF / 10.Dez.2015

Arquivo do blogue