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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Em campanha eleitoral não devia valer tudo

Recentes grandes negociações internacionais levantaram as mais amplas dúvidas acerca o seu efectivo impacte sobre a realidade. No que toca à capacidade nuclear do Irão xiita, o presidente Obama parece averbar mais um sucesso (a juntar ao de Cuba), determinado pelas ofensivas do jihadismo sunita no Próximo-Oriente e norte de África mas que suscita agora algumas indeterminações quanto ao relacionamento futuro com a Arábia Saudita e Israel e às reacções destes países. (E a atitude da Turquia continua muito dúbia neste cenário, tal como a Rússia se tornou imprevisível.)
No caso da União Europeia, titubeante perante o afluxo de refugiados ao Mediterrâneo mas resolvida que ficou (no imediato) a crise financeira grega da forma que se viu, a sequela mais patética que sobrou para nós (e decerto também para outros países congéneres) foi a do acréscimo da conflitualidade interpartidária, tendo em vista as próximas eleições. Será que a incorporação deste tema na política interna poderá vir a ter um efeito estruturante, parecido com aquele que a revolução russa levantou há um século para boa parte dos sistemas políticos nacionais, incluindo a divisão irreversível das próprias esquerdas?
Com efeito, em Portugal o PSD e o CDS-PP festejaram o acordo-maratona de 12 de Julho como um acto de solidariedade para manter a Grécia dentro da moeda única, e o primeiro-ministro Passos Coelho até declarou que, “por acaso”, fora sua a ideia de constituição de qualquer coisa como um fundo financeiro que recebesse “activos” gregos como garantia para mais um “resgate” das finanças públicas deste país. Nesta área ideológica, apenas algumas cabeças mais independentes como Paulo Rangel, Miguel Júdice ou Ferreira Leite (descendente directa dos políticos que governaram o país no século XIX, como que a demonstrar a reprodução social das nossas elites) lastimaram os contornos do processo e desejaram que o mesmo pudesse servir de incentivo para uma reforma da União de sentido mais federal e solidário. Por seu lado, bom número dos comentadores económicos e políticos referiu sem grandes adjectivações os comportamentos irredutíveis dos governantes alemães, austríacos ou finlandeses mas verberou sem rodeios a “irresponsabilidade” demonstrada em variados momentos pela governação grega. Em compensação, Nicolau Santos e muitos outros criticaram mais fortemente as lideranças dos credores do que a dos governantes de Atenas. Apenas uma minoria – onde se destacaram Teresa de Sousa, Ricardo Costa, Jorge Almeida Fernandes, Sousa Tavares e Clara Ferreira Alves – foi capaz de encarar criticamente e com isenção a complicada situação existente, onde há razões e erros de todas as partes. 
A direcção do PS, pela voz de Ana Catarina Mendes, qualificou este resultado como positivo, atribuindo-o ao “cerrar de fileiras” dos socialistas europeus, à frente dos quais certamente estaria o presidente francês Hollande. Mas sectores do partido habitualmente considerados como mais à esquerda (Ana Gomes ou Manuel Alegre) falaram antes de vingança, de humilhação ou de diktat, como também o fez o social-democrata Pacheco Pereira, que corre cada vez mais por sua própria conta e risco.
Quanto ao PCP e ao sector “esquerdista” do espectro partidário, esses não esconderam o desespero e o fel da derrota, profetizando os mais negros dias com o fim da “Europa democrática” e o triunfo – sempre temporário, porque um dia “os bons” acabarão por vencer! – da Alemanha, dos ricos, dos mercados e do capitalismo… embora, naturalmente, com nuances, porque a identidade partidária e o jogo táctico assim o exigem. No Bloco de Esquerda, os lindos olhos de Catarina Martins pareciam fuzilar ao pronunciar aquelas palavras, enquanto a nova estrela em ascensão Mariana Mortágua observava um registo misto de macieza e rispidez, e a “rouquinha” Marisa Matias se exprimia com a naturalidade de quem já está habituada aos grandes areópagos e se tornou amiga íntima dos dirigentes do Syriza: todos para condenar sem mercê a “Europa actual” e passar de largo sobre os dislates, fraquezas e contradições do partido governante da Grécia. Mais discretas mas fundamentalmente na mesma posição – porque têm a ideia de que austeridade orçamental é a mãe de todas as desgraças populares –, as outras forças da “esquerda alternativa” não conseguem responder com credibilidade ao desapego e desilusão provocados nas últimas décadas pelas práticas instaladas no sistema partidário português (e também porque os seus porta-vozes parecem ser quase sempre trânsfugas em esforço de reciclagem para não perderem o sentido e o interesse das suas vidas), desde o partido liderado por Rui Tavares (com alguns mecanismos de funcionamento interno metodologicamente interessantes) até à esquisita coligação encabeçada por Joana Amaral Dias, sem esquecer as forças que há décadas obtiveram a sua legalização e que “renascem” de quatro em quatro anos para sistematicamente obterem scores irrelevantes vindos de um punhado de fieis e de mais algumas pessoas distraídas. Quanto aos outros concorrentes “alternativos” (como agora são o Nós Cidadãos, o Partido Unido dos Reformados e Pensionistas ou o Partido Democrático Republicano de Marinho e Pinto, e antes foram o Partido de Solidariedade Nacional, o MPT, o Partido Humanista, o “Partido dos Animais”, o Movimento Mérito e Sociedade, etc.), nenhum deles parece conseguir escapar ao triplo problema de não apresentarem uma plataforma política ideologicamente clara e realmente diferente dos modelos existentes, de estarem sujeitos a todo o tipo de arrivismos pessoais e de acusarem uma falta de experiência que os leva a cometer “erros de palmatória” na manobra táctica contra adversários e jornalistas manhosos.            
Nesta área, apenas o Partido Comunista mantém a sua coerência de sempre: dogmatismo doutrinário e flexibilidade táctica (embora repetindo jogadas já há muito conhecidas). Porém, essa constância é agora servida por uma geração mais nova de militantes bem preparados, que disfarça o irreversível declínio demográfico da sua base social de apoio e que constitui tanto uma singularidade da história contemporânea portuguesa como um indicador do nosso atraso cultural/civilizacional. (Se reputados historiadores qualificaram o anarquismo da Europa do Sul de “rebeldia primitiva”, será desajustado usar o mesmo prisma de análise para este outro fenómeno?) Com efeito, enquanto o PC grego manifestou a coragem e a inteligência de recusar simultaneamente o “Sim” e o “Não” do referendo de 5 de Julho, o partido do operário-quando-jovem Jerónimo de Sousa vai construindo peça a peça a argumentação e os estudos para uma saída controlada do Euro (como defende o académico João Ferreira do Amaral, outro herdeiro da elite política oitocentista), fazendo-o não por ser melhor opção para as condições de vida do povo português mas por razões de nacionalismo e soberanismo (que um dia talvez lhe possa cair nas mãos, quem sabe?!...), no mesmo espírito com que guarda na gaveta, à espera de melhor oportunidade, a reivindicação de uma saída na NATO ou uma tomada de posição internacionalista a favor da Venezuela ou de outro país governado por um partido-irmão. 
O caso da Grécia versus União Europeia entrou, pois, em força, na agenda propagandística dos partidos e dos media portugueses. Mostrando uma capacidade de “liderança doce” que não se esperaria face ao irrequietismo de Portas (que ficou “aprisionado” depois do episódio do Verão de 2013), Passos Coelho não apenas conseguiu sobreviver para cumprir o “programa de ajustamento” e concluir a legislatura como mostra agora ser capaz de disputar até ao fim a previsível vitória eleitoral do Partido Socialista. Mas, entre alguns sucessos e patentes insucessos, o que parece certo é que a economia portuguesa continua muito frágil, com um desemprego estrutural elevadíssimo, que qualquer maior abalo externo ou derrapagem interna pode de novo precipitar em grave crise.
A propósito deste cumprimento de calendário, deve ser criticada a disposição legal que obrigará a que, tendo o governo tomado posse na sequência das eleições de 5 de Junho de 2011, o novo acto eleitoral tenha de ser atrasado para o início do Outono, sem se perceber como e quem irá apresentar o Orçamento do Estado para 2016 até ao dia 15 de Outubro; sendo duvidosas as capacidades da AR cessante até que a nova eleita tome posse (como poderia, por exemplo, ser decretado o estado de emergência, caso fosse necessário?); e como irá o Presidente da República reagir perante um partido vencedor nas urnas mas sem maioria no parlamento – apenas sendo claro que o actual governo se manterá em funções até à nomeação do seu sucessor (quem? quando?), porém limitado às funções de “gestão corrente”. Ora, tendo em conta estes dados relevantes, que a situação internacional pode ainda vir a tornar agudos, é difícil aceitar que o PR Cavaco Silva não tenha tomado a iniciativa de antecipar as eleições para o início do Verão, julgando talvez que com isso daria um sinal do “regular funcionamento das instituições” mas sendo decerto interpretado por muitos como mais um gesto a favor da maioria partidária a que pertence.
O criticismo geral da opinião pública quanto ao desempenho dos grandes “partidos de poder” – não há hoje figura pública que hoje não o diga, de maneira mais suave ou mais enfática – teve já, pelo menos, o efeito e o mérito de moderar substancialmente as promessas típicas destas ocasiões. Os programas eleitorais escritos dos dois grandes blocos concorrentes são desta vez mais realistas e cautelosos, o que é uma boa coisa (como foi positivo que, em 2000, Guterres tivesse adoptado como programa de governo exactamente o programa eleitoral que apresentara, a despeito do carácter vago de muitas dessas medidas). O mercado – neste caso, o mercado dos votos – acaba por ter sempre razão, embora seja lento a produzir as suas correcções! A coligação governamental promete manter o rumo seguido argumentando com a prudência e credibilidade ganha face ao exterior, acrescentando-lhe um cenário a prazo (de 4 anos adicionais) um pouco mais risonho. Mas entretanto vai abrindo os cordões à bolsa para anunciar o desbloqueio de certas verbas e a reposição parcial de alguns “cortes” (como fez com as pensões dos reformados). Por seu lado, o líder do PS vai por ora seguindo as recomendações do seu staff de economistas, sem se comprometer com objectivos quantificados e apenas prometendo ritmos mais rápidos para a recuperação do rendimento e do emprego perdidos, tal como critica a reforma do mapa judiciário mas apenas se propõe corrigir os seus excessos, e igualmente no caso das freguesias. E ambos insistem no velho jogo de “manejar” dados estatísticos exibindo muitas vezes números em si mesmos verdadeiros mas capciosamente seleccionados.
Nestas condições, espicaçada pelos media, a batalha-de-declarações resvala quase sempre para o desconchavo das frases agressivas, os ataques pessoais ou as acusações genéricas (“mentiras”, “dados falaciosos”, “preconceitos ideológicos”, “má-fé”, etc.), em vez de cada qual anunciar claramente as medidas que pretende tomar, a sua fundamentação e os resultados que espera obter. As próprias “políticas públicas”, de que agora tanto se fala (na saúde, educação, ciência, etc.), são frequentemente objecto desta manipulação e postas ao serviço do combate e dos desígnios partidários, quando desejavelmente deveriam ser motivo e espaço de debate entre especialistas e cidadãos interessados sem vinculação a alinhamentos aparelhísticos. Entretanto, ficam também por discutir matérias de fundo como a da sustentabilidade da Segurança Social, a da eficiência do sector público ou a do modo de melhorar a produtividade do trabalho e da competitividade da economia portuguesa face ao mundo actual.  
De facto, do lado da maioria PSD-CDS, apesar do entendimento tenso e “a prazo” entre os dois parceiros, o coro tem saído bem afinado para martelar as responsabilidades do “despesismo” e “megalomanias” das anteriores governações socialistas, com veladas insinuações a José Sócrates que, no actual contexto global de desfaçatez em grandes negócios e conluios entre dirigentes políticos e empresariais nas nossas imediações (Brasil, Angola, Espanha, Itália, França e outros), deve obter efeitos seguros em largos sectores do eleitorado. Como sempre, é em parte verdade, mas nestas matérias a direita portuguesa não devia aventurar-se, especialmente o PSD (com o corrupio dos escândalos financeiros envolvendo Oliveira Costa, Duarte Lima, Dias Loureiro, Relvas ou Miguel Macedo), embora gente do CDS também tenha sido associada aos processos judiciais da Universidade Moderna, da herdade de Benavente (caso Portucale) ou das “luvas” dos submarinos. E provavelmente todos os grandes partidos se mancharam com contributos do Grupo Espírito Santo, tal como o general Garcia dos Santos denunciou os benefícios que lhes advinham dos contratos das grandes construtoras com a Estradas de Portugal EP ao tempo do super-ministro Cravinho. Além de que “o monstro” da despesa pública lhe é bem anterior.
Pela banda do PS, os ânimos parecem mais inquietos do que se poderia prever depois da pugna interna entre “seguristas” e “costistas”. Relembremos: a prudência e críticas apenas genéricas (ou focadas ad hominem na figura do primeiro-ministro) do novo secretário-geral não rendem os resultados esperados nas sondagens pré-eleitorais; o caso da Grécia e o comportamento dos socialistas europeus não é de modo nenhum encorajador (havendo mesmo quem pense no definhamento definitivo da social-democracia, a despeito dos esforços dos ex-presidentes Soares e Sampaio); as expectativas acerca do candidato a apoiar para Presidente da República, que parece longe de ser consensual e onde, curiosamente, a direita irá talvez assistir a “primárias” livres, para na segunda volta se unir na tentativa de levar o seu favorito a Belém; as interrogações que o “caso Sócrates” e as decisões judiciais podem ainda vir a colocar; até a designação dos cabeças-de-lista por parte do líder levantou de imediato objecções e críticas públicas dos “prejudicados” (para já não falar das ásperas lutas internas que estes processos sempre determinam, no caldo-de-cultura partidária vigente). E o dr. António Costa tinha obrigação de saber que na boa tradição republicana do seu partido não há lugar para “primeiras damas” como ele referiu à comunicação social (no dia 28 de Junho último e repetiu posteriormente) a propósito da dra. Maria Barroso: os alicerces da cidadania liberal-oitocentista, igualitária e laica devem ter estremecido.
Por outro lado, a crise económica e financeira afunilou completamente o debate público dos últimos anos. Onde estão as propostas políticas para a regeneração do regime se, como tantos pensam, boa parte da responsabilidade dessa crise reside no desempenho dos partidos que têm ocupado o poder, embora também com algumas culpas a assacar àqueles que estão, sistematicamente, “no contra”?
Só um programa político, ousado mas realista, de verdadeira “reforma do Estado”, de ruptura com práticas enraizadas nas últimas décadas, seria capaz de devolver esperança e conseguir a re-adesão da maior parte do povo português às instituições democráticas. Um programa que, nomeadamente, avançasse com propostas e disposições sinceras para lograr uma revisão da Constituição, com referendo no final do processo, e das leis necessárias de modo a alterar os seguintes pontos nodais de estrangulamento do actual sistema político: redução substancial do número de deputados da Assembleia da República, com regras de dedicação exclusiva, limites de reelegibilidade e parcimónia do seu estatuto remuneratório; alteração da lei eleitoral com apenas um círculo nacional para os partidos concorrentes, e círculos geográficos de eleição uninominal aberta a independentes; caducidade da legalização dos partidos sem representação parlamentar ao fim de duas ou três legislaturas e revisão dos benefícios financeiros de que gozam; inscrição constitucional de princípios de rigor orçamental e responsabilização pessoal dos decisores em matéria económica e de prevenção da corrupção, com período de “nojo” após o exercício de funções públicas; revisão do mapa, das competências e modo de governação dos municípios; criação de um modelo de regionalização de democracia delegada (a partir dos municípios) e não por eleição directa de novos órgãos de poder; a redefinição de funções e áreas de actuação da PSP e da GNR, com melhor articulação com a Protecção Civil e as Forças Armadas; uma reavaliação realista da política de Defesa Nacional com mais plena consideração dos dados da posição geo-estratégica do país e dos condicionalismos económicos existentes, com provável redução do peso relativo das forças terrestres; garantia e reforço dos dispositivos do sistema de Justiça, para sua melhor eficácia e isenção, mas cuidando também da responsabilização das magistraturas face aos aliciamentos de que podem ser alvo; disposição para pensar melhor e procurar soluções mais eficazes para as funções da Presidência da República, do Tribunal Constitucional, do Conselho de Estado (eventualmente substituíveis por um Conselho da República formado por gente senior) e o modo de designação do Governo, mais directamente saído do voto democrático e no sentido de uma melhor estabilidade.
No plano externo, além da manutenção das nossas relações tradicionais (mas com a tentativa de renegociar o Acordo Ortográfico, de denunciar a presença da Guiné Equatorial na CPLP e de reexaminar todas as relações com países gravemente violadores dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental), orientação para uma revisão das bases de funcionamento da União Europeia de sentido mais equitativo e eficiente, com voto referendário pelo povo dessas novas soluções institucionais.
As regras formais são importantes, porque algumas delas estruturam comportamentos e forjam opiniões nos indivíduos. Mas, em matéria política, mais importante é ainda o espírito e a cultura que anima os protagonistas, que é capaz de perverter uma excelente construção institucional ou de cumprir propósitos benéficos para a maioria apesar da existência de restrições legais pouco convenientes. Porém, isso não se altera por decreto. Mas pode resultar de dinâmicas sociais positivas, embora minoritárias ao início.
Estamos em tempo de Verão, em que (apesar da crise e do sofrimentos de muitos) o país se enche de sol e praias, que a música de festas e festivais vai emprestando alguma alegria às pessoas e os mais afortunados se excedem na compra de novos automóveis caros e em outros esbanjamentos. A vida não pára, e a política também não. As séries televisivas Borgen e Engrenages (ultimamente transmitidas pela RTP 2, um canal agora com programação interessante) podem fazer passar a ideia de que os políticos ou os polícias e juízes de hoje são também “pessoas como nós”. Isso ajuda-nos um pouco a desmistificar a aura de instituições públicas intocáveis e infalíveis. Mas pouco nos diz sobre as lógicas imparáveis que reproduzem e realimentam as relações de poder, sobre o peso inelutável da grande escala económica relativamente “aos pequenos” ou sobre o sacrifício de alguns e os efeitos perversos que muitas vezes são inerentes à prevalência do “interesse geral”. Estes são assuntos que carecem de compreensão mais profunda mas que todo o cidadão ganharia em adquirir, permitindo-lhe um ajuizamento próprio fundamentado sobre o mundo em que vivemos.
JF / 1.Ago.2015

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Negociações, pressões e um drama europeu chamado Grécia

O mundo ocidental e, em particular, a Europa desenvolveram no último século o primado da negociação sobre quaisquer outras formas de relacionamento, quer na ordem interna dos estados, quer ao nível internacional.
A agudização do processo negocial aberto em Janeiro último entre o governo recém-eleito da Grécia e as entidades públicas que têm financiado nos últimos anos a sua sobrevivência económica fazem-nos recordar as viagens, conversações e acordos diplomáticos de 1937-39 entre Chamberlain, Ribbentrop e outros agentes das potências da época. Entre confiança, desconfiança, mentiras e propaganda para as massas, o resultado final foi a queda inapelável numa confrontação guerreira praticamente ilimitada.   
Nesses tempos, onde ainda soavam ecos das revoluções violentas como haviam sido a francesa e a russa, os dirigentes das forças opositoras aos poderes constituídos punham em risco as suas próprias vidas quando se metiam a lançar processos de assalto decisivos: muitos conheceram as prisões e alguns a forca ou os pelotões de fuzilamento; e os insurgentes ou simples descontentes que seguiam as suas palavras-de-ordem eram pura e simplesmente espingardeados nas ruas pelas guardas nacionais ou pelas tropas regulares, antes de conhecerem o cárcere ou as deportações. Hoje, graças a meio-século de convivência democrática e a uma melhor afirmação dos direitos de cidadania, nem estes pleitos se dirimem assim, nem os dirigentes políticos correm os mesmos riscos: pelo contrário, a alternância na governação e o respeito e protecção de que beneficiam as minorias protestantes asseguram geralmente aos chefes vencidos bons proveitos pessoais para o dia seguinte, seja vendendo a uma grande empresa os saberes adquiridos na sua experiência governativa, seja, no mínimo, fazendo conferências como professor convidado por um ror de universidades em disputa.
Por outro lado, a chamada 2ª Guerra Mundial foi o último conflito bélico onde ainda se respeitaram certas regras convencionais de limitação da violência por um bem-intencionado direito humanitário universal: declarações do “estado de guerra”; distinção (pelo vestuário) entre soldados combatentes, “guerrilheiros” e população civil; protecção dos prisioneiros e socorro aos náufragos; armistícios e tratados de paz no final; castigo de “criminosos de guerra”; etc. Consequência disto foi uma enorme fuga-para-diante no aperfeiçoamento de tecnologias com imediata aplicação militar, para buscar superioridade sobre o adversário nesse campo. Contudo, já se começaram a utilizar “tropas especiais” (para acções “não convencionais”), recorreu-se (dum lado e doutro) aos bombardeamentos maciços da aviação para quebrar o moral das populações urbanas do adversário e destruir a sua logística (fábricas, depósitos, navios mercantes, etc.) e, talvez mais que tudo, particularmente por parte do “Eixo”, foi o abuso e o massacre perpetrado sobre prisioneiros e populações civis amontoados em “campos de concentração”.
Desde então e abstraindo a Coreia (1950-53) e a guerra Irão-Iraque (1980-88), os conflitos bélicos têm tomado quase sempre a forma de “guerras revolucionárias” versus “guerras contra-subversivas”, de “luta armada” urbana, de terrorismo jihadista e, mais recentemente, de guerras convencionais limitadas não-declaradas, que nalguns cenários se estão dobrando de guerras religiosas. Em todos estes casos, os combatentes ofensivos são “irregulares” a quem todavia não faltam algum treino no manuseamento de armas e técnicas elementares do seu uso, mas sobretudo a quem não faltam financiamentos e apoios logísticos, por actores que permanecem na sombra. E as forças “institucionais” que lhes fazem frente ficam quase sempre encurraladas pelas iniciativas do adversário, pelas suas próprias peias legais e pela menor legitimidade que muitas vezes a opinião pública lhes concede. Daí a tentação da escalada dos meios de violência empregues (policiais ou militares), os quais se mostram frequentemente desajustados; face à rusticidade e aparência inorgânica dos insurrectos, acaba por sair reforçado o capital de simpatia que estes podem ter junto de algumas populações mais frágeis e sensíveis aos seus apelos. No último quarto de século assistimos com regularidade à ocorrência de actos terroristas (bombismo, assassinatos, tomada de reféns, etc.) que provocam sempre grande alarme e impacto mediático, a curtas mas mortíferas guerras desiguais de que as mais evidentes têm sido as travadas entre Israel e os radicais palestinianos e, por último, a guerras convencionais de-conquista-de-território e/ou de-controlo-de-populações, como temos observado no Sudão e Somália, nos Balcãs, na Ucrânia, na Síria-Iraque, no Iémen, na região interior da Nigéria-Níger-Chade-Mali ou ainda na Líbia.
Embora muito se jogue também nos planos mediático e simbólico, esta última forma de violência é, em si mesma, bem mais instrumental do que expressiva. É por isso que estas acções bélicas se articulam muito estreitamente com os processos negociais, sem nada de comum com as guerras tradicionais vividas até 1945 em que se procurava a derrota e o esmagamento do adversário “sem condições”, ainda que o vencedor também saísse exausto da contenda. Tal como a sociologia do trabalho analisou pormenorizadamente para os conflitos laborais, a acção no terreno funciona como pressão para lograr uma determinada vantagem nos argumentos, ameaças e outras “paradas” que se passam à mesa das negociações: só que, em vez de greves, activam-se acções-de-força militares (operações ofensivas ou recuos tácticos, “golpes” inusitados, etc.); e o “tapis vert” pode ser apenas virtual, substituído por declaração à imprensa, “fugas de informação”, operações de intoxicação das “redes sociais”, conversações telefónicas ou por vídeo-conferência, encontros momentâneos onde se estabelecem acordos que logo em seguida podem ser anulados e outras manobras de ameaça, bluff ou sedução em que a inteligência humana é fértil.
Nestes casos, as forças no terreno – isto é, os homens e mulheres concretamente envolvidos – aparecem como verdadeiros peões de um jogo de xadrez cuja racionalidade de movimentos está toda concentrada nas decisões de um pequeno núcleo de dirigentes. Em comparação com as ordens sacrificiais dos antigos cabos-de-guerra para a batalha em campo aberto, é difícil sobrepesar em qual situação será mais aflitiva a alienação existencial daqueles desgraçados. Mas, atenção! A sua submissão a tais desígnios não é extensível indefinidamente. Podem acontecer momentos de rotura, em que as promessas (de saque, de glória, de desforço sobre um outro insuportável ou de realização de uma ambição identitária sentida como justa ou irreprimível) se esfumam perante o esforço que lhes é exigido e a revolta da turba acaba por estalar, virando-se as armas contra os chefes, toldando-se o discernimento, difundindo-se indiscriminadamente a violência e instalando-se o caos.
Um tal processo pode ter leituras literais ou também metafóricas, e ter aplicações históricas em casos como o da Líbia desde os tempos finais do “Kadafismo”, do “Estado Islâmico” que controla vastas regiões da Síria e Iraque ou da Grécia actual.
Há dois anos atrás, a propósito da crise financeira de Chipre (do Chipre “grego”, pois há também um problema com o norte “turco” da ilha não definitivamente resolvido, o que não impediu a entrada daquele na União Europeia), esboçámos algumas notas analíticas que aqui vamos recuperar. Escrevera-se então que, depois de meses e meses de expectativa e meias-medidas, ficava claro que o “caso insignificante” de Chipre fora o sinal decisivo, perceptível à grande opinião pública, da incapacidade das autoridades políticas e financeiras da Europa para garantirem a estabilidade da sua zona monetária e reabsorverem as dívidas excessivas de vários dos estados da periferia (por acumulação de défices orçamentais excessivos, estagnação económica e outros fenómenos derivados da integração económica mundial).
Como sempre, os mesmos fenómenos, aparentemente objectivos e de sentido unívoco, podem ser vistos de ângulos diversos e surpreendentes, como aconteceu com as notícias que então circularam acerca do anúncio da taxação dos depósitos bancários por parte das autoridades, que levou à revolta popular na ilha e a ameaças diplomáticas do Kremlin. As parangonas dos jornais e noticiários encheram-se de frase curtas e de choque remetendo para interpretações diversas. E até na mesma edição do Expresso (de 23.Mar.2013) pôde ler-se que «a situação em Chipre é única pois os depósitos são, na verdade, fantásticos investimentos» (R. Costa, p. 5), que «o saque dos depósitos bancários em Chipre ilustra bem a vocação imperialista dos atuais donos da UE» (F. Madrinha, p. 15), que «o problema não é taxar acima dos 100 mil euros num país onde os depósitos não pagam impostos. O problema é a retroactividade da medida e é a decisão de taxar abaixo desses valores, sobrecarregando os pequenos aforradores para salvar os oligarcas russos» (D. Oliveira, p. 33) ou ainda que «na prática, Chipre funciona quase como uma off-shore: paga taxas elevadas pelos depósitos, cobra poucos impostos e faz muito poucas perguntas pela origem do dinheiro» (N. Santos, p. E-5).  
No final de uma semana agitada, a perspectiva de bancarrota pôde ser estancada com um acordo entre as autoridades cipriotas, a UE e o FMI que que manteve a protecção aos depositantes-aforradores (por parte de um Fundo de Garantia de Depósitos) mas penalizou os investidores-especuladores, o que pareceu ser uma saída mais aceitável para a confiança pública nos sistemas bancários, a moral e alguma entreajuda europeia. De facto, esta solução de fazer incidir sobre os accionistas, os “investidores” e os “grandes depositantes” o grosso das perdas, salvaguardando os depósitos dos “pequenos” – em vez de sobrecarregar os contribuintes com mais impostos – pode ser uma solução interessante, desde que uma falência destas não ponha em risco de colapso todo um sistema financeiro. Já quanto aos direitos e expectativas dos obrigacionistas é normal existirem muito mais dúvidas: provavelmente, a solução mais equitativa num caso de falência será garantir a integralidade das quantias avançadas até um certo limite (como nos depósitos) e, para os mais “graúdos”, aplicar uma regra progressiva que penalize mais fortemente os “grandes capitalistas” e os “institucionais”. (Foi um pouco a diferença entre as soluções encontradas em Portugal para os casos das falências do BPN e agora do BES – à parte os crimes que a justiça julgará –, com os dinheiros públicos a “taparem o buraco” do primeiro, e uma repartição das perdas entre os vários interesses em causa no segundo.) Que, naquelas circunstâncias, os banqueiros, o Kremlin ou os financeiros chineses se tivessem alarmado, é natural. Que os países e praças-refúgio de capitais se sentissem inseguros (a Suíça que se acautele…), é compreensível. Mas que o socialista Hollande e as esquerdas europeias tenham reagido nesta conjuntura tal qual o señor Rajoi é que é talvez mais significativo, fazendo aparecer Mr. Cameron ou Frau Merkel como pessoas mais sensatas ou equilibradas do que habitualmente são apresentadas.
Dois anos passados, a “União Bancária” terá avançado tecnicamente alguma coisa mas sem que haja uma consciência pública disso e apenas o Banco Central Europeu se evidenciou como instituição-chave do Euro e da própria União Europeia, ao assumir a compra de dívida dos estados em pior situação e ao fazê-lo imprimindo e pondo em circulação mais papel-moeda, não apenas porque a muito baixa inflação o permitia mas também porque conseguiu impor a sua orientação à tradicional política monetária estabilizadora do Bundesbank. Não só o Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) comparticipou maioritariamente nos empréstimos de emergência aos governos de Portugal, da Irlanda ou da Grécia (tendo-lhe esta última um débito actual da ordem dos 130 mil milhões de Euros, do total de 312 da sua dívida pública), como o próprio BCE facilitou nos últimos meses a baixos juros outros cerca de 90 mil milhões para a banca grega ter alguma liquidez para funcionar, face à galopante fuga de capitais que se registou para o exterior do país. Mas também é verdade que as políticas de rigor orçamental (a “austeridade” de que todos falam), pela maneira como foram aplicadas –  no tempo, na dose e na forma – não funcionaram, por terem contraído demasiado a economia e empobrecido boa parte das populações, como eloquentemente aconteceu na Grécia.
De Janeiro a Julho do corrente ano arrastaram-se as negociações entre as instituições prestamistas (BCE, FMI e CE, embora tivesse caído o denominativo de “troika”) e o novo governo grego liderado pelo seu partido Syriza, um conglomerado de formações esquerdistas semelhante ao nosso Bloco de Esquerda que havia vencido as eleições com 36% dos votos, insuficiente para ter maioria no parlamento (apesar do avantajado bónus atribuído ao partido ganhador), o que só conseguiu com uma aliança contra-natura com o partido nacionalista-conservador dos Gregos Independentes, que obteve como prémio o ministério da defesa. Como seria de esperar, de tudo se ouviu nas aparições públicas destes negociadores e nos comentários proporcionados por “fontes habitualmente bem informadas”: irredutibilidade, aproximações, afastamentos, acordos próximos, adiamentos, quase-rupturas; ameaças, gestos de boa-vontade, duplas linguagens, qualificativos ofensivos ou acusações de “chantagem” da outra parte (termo sempre mal empregue, por não se tratar de obter vantagem com a revelação pública de algo vergonhoso que o outro quer esconder). A senhora Lagarde e o alemão Schäuble distinguiram-se neste exercício de lançar frases contundentes, em contraste com a prudência da chanceler Merkel, o atentismo do senhor Dijsselbloem, as diligências de Juncker ou de Martin Schulz e o embaraço de François Hollande, cujas declarações parecem ser sempre banalidades previsíveis. De seu lado, o primeiro-ministro grego Tsipras, emparedado entre as promessas anti-austeritárias que o levaram ao poder e a realidade de um país em situação económica desesperada, tanto aparecia como um homem simpático e moderado prestes a entender-se com o resto dos dirigentes europeus como surgia com acenos à Rússia de Putin ou vociferando nos comícios internos contra a “ditadura financeira” da Europa e dos mercados. Mas o mais mediático destes protagonistas foi decerto o seu ministro Varoufakis, com um estilo de rockista-de-esquerda e a presunção de economista-não-alinhado (ensinando em várias universidades do mundo, incluindo americanas, e autor de O Minotauro Global e de outros ensaios iconoclastas), cujo perfil se tornou especialmente apelativo para os mass media internacionais.
Estas incertezas e reviravoltas acabaram por enfraquecer e abalar a confiança de decisores, instituições e dos simples cidadãos: nas estruturas supra-nacionais da UE; nos processos de negociação envolvendo políticos e dinheiros; na solidariedade dos mais fortes para com os mais fracos; na verdade dos argumentos esgrimidos; e na própria representação dos interesses colectivos dos povos por parte dos seus dirigentes eleitos ou delegados – daqui resultando atitudes primárias de “cada um por si”, conflitualidade difusa e desinserção social. Enquanto isto, é verdade que uma fracção considerável do povo grego caiu na miséria, que os ricos e os mais afortunados já puseram a salvo tudo o que podiam e que, ainda por cima, o país é “castigado” com levas sucessivas de refugiados da Síria que não pode nem sabe como acolher e tende a “deixar seguir” para o continente.
Os primeiros dias do Verão foram verdadeiramente alucinantes; dizia-se estar à beira de um acordo, mas com o súbito anúncio de levar este a referendo popular. Apesar da péssima reputação da sua burocracia estatal, o sistema político da Grécia já nos havia surpreendido em Janeiro com a tomada de posse de um governo de coligação dois dias após o acto eleitoral. Agora, ser capaz de convocar um referendo com uma semana de antecedência é uma lição de democracia directa que muitos deveriam aprender. Porém, se é verdade que é nos detalhes que o diabo se esconde, também aqui é necessário escalpelizar esta imagem romântica da Ágora. Pelo lado dos prestamistas internacionais, é inaceitável que o senhor Juncker e outros líderes europeus se tenham metido a “fazer campanha” numa decisão que só aos gregos competia: e eles foram mais além do que o simples esclarecimento do ponto em que haviam ficado as negociações. Pelo lado das autoridades gregas, embora estas manobras eleitoralistas sejam infelizmente habituais, teria sido desejável que o governo de Tsipras se tivesse colocado numa posição menos comprometida, deixando ao partido Cyriza a tarefa da propaganda; e sobretudo que não tivesse lançado a ameaça da demissão em caso da vitória do “Sim”, que seria a maneira de alijar as responsabilidades próprias neste processo e lançaria o país numa crise política inextricável, como que a pedir uma intervenção “de salvação nacional” dos militares. Isto, além de outras manobras mais rasteiras como a de colocar nos boletins de voto a alternativa “Não” em primeiro lugar (antes do “Sim”), ao invés do que é habitual…
Da consulta popular de 5 de Julho resultou uma vitória expressiva do “Não” (61/39), mas é forçoso perguntar porque a comparência às urnas não foi além dos 62% dos eleitores, num momento crucial para a sobrevivência do país. Haverá já tanta gente desinteressada do jogo democrático, vergada pela miséria económica e o desencanto dos políticos actuais? E quantos irão amanhã atrás de um líder nacional-populista que lhes prometa “pátria e dignidade”?    
Paradoxalmente – e embora fosse completamente previsível que este recurso ao referendo iria deixar o país muito confuso, dividido e sem dinheiro nas caixas –, o resultado menos mau foi ainda o da vitória do “Não”, porque obrigou o mesmo governo grego a voltar a Bruxelas e a ter de assinar pouco mais ou menos o que antes rejeitara (embora com a promessa de um alívio da dívida), a troco de uma injecção imediata de uns milhares de milhões de Euros para que o país não se afunde no caos. E esperemos também que vá forçar a União Europeia a encarar de outra maneira, menos “contabilística”, o problema aflitivo que atinge o povo grego e que está a gerar uma “guerra económica” entre países no seio da UE. Estamos no day after e ninguém arrisca adivinhar.
Se o resultado tivesse sido outro, reafirmava-se a vontade da maioria dos cidadãos de se manterem ligados à Europa política e económica existente, mas o Syriza lavaria as mãos como Pilatos deixando o país na miséria e sem rumo. É claro que, na situação actual, o governo vai bradar às massas (dos seus seguidores gregos e aos esquerdistas de alhures) que obtiveram um melhor acordo e “lavaram a honra” do povo helénico. Mas não é de todo seguro que dentro de pouco tempo o partido Syriza não enfrente contestações e dificuldades insuperáveis como principal gerente da austeridade que ele prometera esconjurar. Ou seja: segundo o “método europeu” bem conhecido, o caso “Grécia-2015” terá sido apenas resolvido provisoriamente, e pode vir a explodir de novo numa próxima oportunidade. A não ser que este cenário expluda já, por desacordo irremediável entre os negociadores europeus e gregos, precipitando-se o desastre. Nesta hipótese, o “Não” vitorioso nas urnas seria finalmente um “não à Europa” (quer dizer, ao Euro), ainda que esta transição seja também ela repleta de indeterminações e abalos imprevisíveis neste momento. Em todo o caso, veremos como vai reagir a esta crise nos próximos tempos o sistema de relações internacionais, tanto no plano financeiro como político, desde a NATO (que bem se acomodou com o regime dos coronéis) ao FMI, da OMC aos “sete” ou às discretas conversações telefónicas entre Washington, Moscovo e Pequim.
Muita gente diz que a saída da Grécia do Euro poria fim à construção europeia. É talvez excessiva e alarmista esta ideia mas, com a Inglaterra a querer redefinir a sua posição, uma França tentada pelo isolacionismo, com a Alemanha e outros países setentrionais fartos de pagarem para os “mandriões do Sul” e estes a acusaram aqueles de egoísmo nacionalista, é o projecto federal europeu que parece cada vez mais longínquo, justamente quando a mal-sucedida experiência da moeda única exigiria novos passos nessa direcção, sobretudo se o “contágio” grego se vier propagar ao Chipre, a Portugal, à Espanha, à Itália ou a outros países com as finanças pouco consolidadas. O que poderá restar então da “Europa unida” será talvez um pacto interno de não-agressão e não-revisão de fronteiras (a despeito de algumas possíveis novas independências regionais), a manutenção de muitos dos actuais mecanismos de cooperação (Erasmus, etc.) e a preservação da zona de livre comércio “do Atlântico à fronteira russa” (se não mesmo “aos Urais”) para tentar manter a sua competitividade externa face aos grandes mercados, próximos e longínquos. Mas a revisão do acordo de Schengen imporá novos controlos fronteiriços à circulação de pessoas (sécurité oblige) e o “modelo social europeu” será uma lembrança nostálgica de alguma esquerda envelhecida.
Curiosamente, na mesma semana álgida da crise grega, o Guardian (3.Jul.2015) publicava um texto de opinião de David Priestland que começava assim: «Anarchism could help to save the world – State socialismo has failed, so has the market. We need to rediscover the anarchist thinker Peter Kropotkin.». Pela minha parte, reajo com a maior desconfiança à ideia de ‘salvação’. O ex-príncipe russo, ex-militar e ex-geógrafo, rebelde e revolucionário, homem-bom e crente na ciência moderna que há um século se exilou na Grã-Bretanha pode ser uma inspiração (para mim, é), mas apenas isso. Não uma qualquer ‘revelação’. Os tempos actuais não o consentem.
JF / 6.Jul.2015

domingo, 21 de junho de 2015

Bons ventos!

Encerramos por aqui esta segunda série de crónicas desassombradas e ensaios sócio-lógicos, que já leva dois anos e meio de análises e reflexões.

Muitos dos textos inseridos referem-se à vida política, em particular na forma como ela vai sendo modelada em Portugal. Não se trata de uma fixação particular do autor neste tema, nem ele é geralmente muito agradável de tratar, mas apenas porque, numa perspectiva de cidadania e da polis como responsabilidade de todos e de cada um, a política sobrepõe-se, em última instância, a todos os outros aspectos das nossas vidas. Note-se, porém, que esta percepção só se tornou possível com a progressiva instalação da Modernidade (e do Estado-nação) pois que até então a política era, não só (como hoje) uma actividade exclusiva de uns poucos – os que detinham o poder e dominavam a sociedade, e os que procuravam conquistar tal posição –, como de facto a grande maioria das pessoas se concebia, pensava e agia fora de tais preocupações, dedicando-se antes a assegurar a sua sobrevivência material, a usufruir da felicidade possível, a tratar dos interesses e dos negócios, ou a cuidar da salvação da sua alma.
O mundo mudou imenso neste último meio-século, geralmente para melhor, mas também com aspectos negativos, que não podem ser ignorados e que é importante conhecer e combater. 
Não sei se estas crónicas e análises irão ainda prosseguir. Dependerá das circunstâncias e da minha relação com elas. E também é certo que detesto repetir-me.
Parto da minha auto-análise. Olho para trás, para o que fiz, para o que pensei. O que é que isto pode revelar a respeito de mim próprio? Se não estou a ser demasiado auto-complacente, talvez uma hierarquia de três características o possa resumir. Primo: A orientação valorativa mais profunda, mais determinante, terá sido sempre a procura de respostas e de comportamentos pessoais éticos, isto é, que conseguissem distinguir o bem do mal, o melhor do menos bom, o princípio estruturante da mera circunstância, etc.; e de, assim clarificado o terreno, procurar em seguida um lugar e um caminho próprios (não será isto arrogância? soberba?), mesmo contra interesses pessoais vistos como legítimos pelos demais, ou pagando algum isolamento dentro do grupo de pertença face à necessidade de denúncia dos seus “pecados”. Sempre me marcou a frase de um histórico: “de mal com el-rei por amor dos homens, e de mal com os homens por amor d’el-rei”. Neste sentido, tal não pode deixar de tomar-se se não como um idealismo, quer isso tenha assumido temporariamente a forma de Deus, da pátria, de uma instituição, da liberdade, da Ciência ou da humanidade. Secundo: Posso talvez identificar a busca, sem interditos, de explicações racionais, lógicas, comprováveis, para tudo aquilo que nos rodeia, sobretudo no Homem e na Sociedade. Daí o interesse que, desde miúdo, nutri pela disciplina da História, a insatisfação para com o conhecimento consolidado enquanto verdade indiscutível partilhada com auto-satisfação por uma dada comunidade (a nação, a classe social, os colegas, a família). Foi talvez aquilo que Foucault chamou a “vontade de saber”. Mas sempre implicando uma atitude crítica para com o “instituído” e também uma necessária modéstia acerca do nosso saber face à imensidão do que desconhecemos. Tertio: Enfim, uma postura activa, de esforço pessoal e cooperativo – em suma: de trabalho –, não apenas como fonte de experiência directa mas talvez sobretudo como “transacção cultural”, que salda as dívidas de injustiças externas (a desigual distribuição da inteligência, da riqueza, da beleza, etc.) e de benefícios usufruídos imerecidamente (a educação recebida, uma carreira profissional bafejada pelas circunstâncias, etc.) com esta “postura de trabalhador”, que daí tira o seu principal orgulho.
Há sempre ventos, inesperados e cortantes, que vêm perturbar a calmaria em que nos instalamos ou as previsões mais pessimistas. Oxalá os próximos permitam a renovação das melhores esperanças que persistentemente têm alimentado a aventura humana.

João Freire / 21.Jun.2015

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Doze mil palavras acerca da Modernidade: apogeu e crise do Estado-nação; o advento da “mundialidade” – 2ª Parte: Século XX

O Ocidente entrou no séc. XX cheio de belas expectativas. As Grandes Exposições, surgidas nas últimas cinco décadas, constituem as novas Festividades pagãs que se vão substituindo aos marcos dos calendários religiosos tradicionais: organizadas pelas elites, mas com usufruto estendido às cada vez mais extensas populações urbanas. E o turismo, inicialmente apenas aristocrático, burguês e aventureiro, acabará por estender-se às classes populares a partir de meados do século, quando começam a esboçar-se as formas de uma democracia social. O desporto, o espectáculo desportivo e a “compensação naturalística” têm também aqui um papel primordial.
Quase todas as modalidades desportivas modernas foram codificadas em Inglaterra, mas o seu impacto foi muito forte e rápido nos países ocidentais e, progressivamente, no mundo inteiro. Denotando as intenções cavalheirescas e as origens aristocráticas dos seus fundadores, os Jogos Olímpicos forjaram em poucos anos uma mitologia de superação humana, de lealdade e convívio internacional absolutamente surpreendentes. No mesmo espírito, embora mais rude e estimulante do envolvimento das classes populares, o futebol tornou-se uma prática distractiva universal. E outras actividades físicas seguiram o mesmo trilho: o atletismo, a ginástica, as lutas, o ciclismo, etc.   
Igualmente os movimentos juvenis, e em particular o escutismo, constituem novidades do séc. XX. Num ambiente urbano que cada vez mais ignorava o mundo natural que o rodeava, bons educadores tiveram a ideia de ocupar e ensinar os jovens no conhecimento sensível desse meio biológico indispensável e, simultaneamente, no desenvolvimento de valores de altruísmo e solidariedade, independentemente de raças, religiões, nacionalidades ou classes sociais. Como é lógico, as Igrejas viram aqui uma possibilidade de proselitismo; e as ideologias totalitárias (fascismo, comunismo, nazismo, fundamentalismo islâmico) vieram a apostar a fundo neste domínio. Mas os movimentos sociais da juventude (inicialmente separados segundo o sexo) tomaram muitas feições, políticas e sociais, e não podem ser simplificadamente descritos como vinculados a tal ou tal ideologia. Representam, sim, uma procura de emancipação social, malgrado o facto de se tratar de uma condição ou identidade apenas transitória na linha da vida de cada indivíduo.
Perto destas iniciativas experimentadas pelas populações urbanas, de um momentâneo “regresso à natureza”, situam-se também as práticas naturistas, que desabrocham com grande vivacidade entre algumas minorias no início de Novecentos: o vegetarianismo, o nudismo solar ou o campismo. Em núcleos muito mais reduzidos e com outras implicações mais complexas, divulgam-se também práticas libertinas ou libertárias como a liberdade sexual ou a vida em comunidade.
O feminismo conhece por esta época a sua primeira vaga de afirmação internacional, em particular com as reivindicações “sufragistas”, reclamando o direito de voto para todas as mulheres, independentemente do estado civil, condição social, rendimentos ou literacia, nos países onde os governos eram já ditados pelas urnas eleitorais. Mas também na literatura e nas artes, na progressão escolar, na afirmação profissional em determinadas actividades (professorado, saúde, etc.) e no protesto contra as principais formas de subordinação da mulher ao homem (na lei e nos costumes, incluindo a prostituição), o movimento de emancipação social das mulheres inicia aqui a sua grande marcha, que prosseguirá por etapas até aos nossos dias.
Com o alargamento da escolaridade e da literacia, aumenta o número de leitores da imprensa e das obras literárias; os grandes romancistas são facilmente traduzidos em várias línguas. Nas ciências físicas, é a descoberta das radiações e da composição íntima da matéria, mais a formulação da teoria da relatividade por Einstein, que marcam decisivamente a aventura do novo século. Os Prémios Nobel (produto da riqueza e provável “má-consciência” do sueco inventor da dinamite) vêm consagrar e divulgar estas principais figuras da ciência e da cultura. Ao mesmo tempo que a febre da competição estimula e celebra as proezas (e alguns desastres) dos aventureiros-descobridores dos últimos recantos da Terra até então inacessíveis aos humanos – os pólos e os principais cumes montanhosos – e se lança na aventura da conquista dos ares.
De facto, abandonando pouco a pouco a experiência do balonismo, o motor de explosão e um melhor conhecimento da física dos fluidos permite a invenção e rápida divulgação do avião, logo aproveitado como arma de guerra, mas que se irá estender para o transporte civil de passageiros de forma cada vez mais abrangente, maciça e irreversível. E, paralelamente, o automóvel substitui progressivamente quase todos os anteriores meios de transporte terrestre, transformando a vida das cidades, as mobilidades de pessoas e mercadorias, impulsionando o turismo. Entrávamos numa civilização marcada pelos equipamentos mecânicos, não apenas na esfera da produção, mas também na cidade e no próprio espaço doméstico. A partir daqui, o carvão vai sendo substituído pelos derivados do petróleo como fonte energética principal, directamente e para responder à procura crescente de electricidade.
Por outro lado, as artes aumentam o seu impacto sobre a sociedade. O teatro – que sempre é uma representação viva de fragmentos da vida – conquista novos públicos, mais populares. E emergem novas disciplinas artísticas já tributárias dos desenvolvimentos da pequena mecânica, da óptica e da química: a fotografia e o cinema são as artes do séc. XX, aptas a influírem sobre as novas “sociedades de massas”, urbanas e desenraizadas, a primeira sobretudo através da propaganda e da publicidade, a segunda percutindo profundamente os imaginários individuais e colectivos. A música também acompanha este movimento, ao deixar à parte o concerto instrumental ou sinfónico e o canto lírico, de um lado, e a música folk tradicional (rural) de outro, para fluir em novas tonalidades de raiz urbana – por vezes dançável – mas especializada segundo os meios sociais específicos onde se foi gerando: os blues, o fado, o tango, o jazz, a java, o charlston, o samba, a rumba, o rock, a pop, etc. A dança clássica atinge um cume mas vai ceder progressivamente o seu lugar ao “ballet contemporâneo”. Porém, no plano estético, as grandes rupturas trazidas pelo novo século situaram-se na pintura e na música erudita, com a chegada das telas não-figurativas e abstractas (mais tarde ultrapassadas pelo surrealismo) e com a invenção de formas de música não-melódica: uma e outra traduzem decerto as perplexidades existenciais do indivíduo no mundo Moderno, mas são também porventura um modo de evitar confrontos directos com obras-primas já criadas e talvez insuperáveis, empurrando os criadores para a descoberta de novas pistas e linguagens. 
Partindo dos balbuciamentos da psicologia, com Freud e a psicanálise inaugura-se um continente novo da esfera do saber: a exploração do inconsciente em cada um de nós, com aplicações terapêuticas e efeitos colaterais em várias das ciências humanas em construção (a linguística, a antropologia, etc.).
Na escultura e sobretudo na arquitectura, operam-se também importantes rupturas, com os criadores a decretarem a certidão de óbito de estilos como o vitoriano ou o neo-clássico e a terem clientes disponíveis para pagar o experimentalismo de novas formas de edificar e compor o espaço urbano.
Mas, para além da art nouveau e do “modernismo”, da Bahaus ou Le Corbusier na arquitectura, e das frivolidades da belle époque, o séc. XX inaugura-se também com a hecatombe da chamada Grande Guerra. E aqui se gera um fenómeno de choque existencial, de estilhaçamento de todas as anteriores representações “unitárias” da condição humana de que ainda andamos hoje a procurar “apanhar os cacos”. Sem o recurso a uma explicação religiosa; conhecendo as mais promissoras vantagens do mundo da técnica; tendo atingido a maioridade em termos de progresso humano ao se decretar a liberdade e a igualdade como valores essenciais para a dignidade de todos os Homens – como foi possível que este século tenha começado por se destruir num conflito bélico que vitimou milhões de pessoas? Como foi possível que, na sua imediata decorrência, se tivessem posto de pé, com farto aplauso popular e também de certas elites pensantes, dois sistemas políticos ditatoriais (o nazi-fascismo na Alemanha e na Itália e o comunismo na Rússia) em que o chefe e o Estado eram tudo e os cidadãos eram nada? Como foi possível pensar-se e executar-se o holocausto de milhões de judeus e outras minorias “não-arianas”? Como foi possível cair-se em nova guerra mundial com ainda mais milhões de mortos? E ter-se recorrido à bomba atómica – com os efeitos devastadores que se sabem – para evitar o prolongamento da catástrofe? Foi destes desconcertos que mais tarde Orwell deu conta literariamente e que outros da mesma geração e sensibilidade puderam escrever, em plena “guerra fria”, desafiando toda a lógica então esmagadoramente dominante: “o mundo livre, de facto, não é livre; e o mundo comunista, realmente, não é comunista”. 
A História está cheia destas descoincidências: neste caso, a Rússia socialista (1917-1991) ficou conhecida, formalmente, como “União Soviética”, quando nunca foi nem União, nem soviética. Não constituiu uma União porque esta é uma agregação contratual de unidades políticas com identidade e autonomia próprias, como a actual União Europeia, que aliás melhor seria designada por Confederação Europeia, mas cujo desígnio era (é?), no olhar de Delors, Soares e consortes, de facto o de caminhar em direcção a uma verdadeira federação, como a dos EUA. E jamais foi efectivamente “soviética” pois o Estado construído pelos marxistas bolcheviks após a tomada do poder central da Rússia perseguiu implacavelmente os sovietes (conselhos), que eram os órgãos de deliberação colectiva local dos “deputados operários, camponeses, soldados e marinheiros” eleitos pelos seus pares nas estruturas de base, neste caso, produtivas e militares.
Mas, cortando cerce os entusiasmos ideológicos de um punhado de “conselhistas” que permaneceram fiéis a esta ideia generosa da revolução da Rússia, também se diga que esta fórmula de “democracia proletária” escondia a tese marxista da “ditadura do proletariado”. Segundo esta concepção, além da expropriação das riquezas privadas (bens de raiz, fábricas, negócios), a burguesia devia ser privada de direitos políticos (concretamente, o direito de voto, para sustentar o poder do Estado) durante a fase de transição da sociedade para o “comunismo”. Este último conceito queria significar a materialização da ideia utópica do fim da “divisão-do-trabalho”, da abolição das classes sociais e da dissolução do Estado, o qual era interpretado como o instrumento de opressão de uma classe social sobre outras, segundo as ideias propagadas pelas escolas de pensamento socialista do séc. XIX. Por outro lado, estes sovietes, surgidos mais ou menos espontaneamente nos levantamentos populares de 1905, também concretizaram em 1917-21 a “aliança operária-camponesa” de concepção leninista, conjuntamente com o oportunismo táctico do próprio Lénine, que a associou às expectativas dos milhares de filhos do povo que tinham sido mobilizados para a guerra e que, estando em armas e muito descontentes, poderiam ser o instrumento decisivo para deitar abaixo o czarismo. Algo que nós conhecemos em Portugal com a “aliança povo-MFA” em 1974-75.
A guerra que rebentou em 1914 teve causas hoje inteiramente compreensíveis à luz da nefasta combinação de factores como foram as rivalidades entre as potências europeias que disputavam entre si um lugar predominante na economia mundial, a sede de lucro dos industriais do armamento, o espírito nacionalista imbuído em largas massas das populações, o ethos belicista dos comandos militares e aquele tipo de “reacções-em-cadeia” que, sem premeditação, acabam por conduzir ao desastre. Terá sido o que aconteceu com o sistema de alianças entre nações que devia prevenir ou travar um conflito no espaço europeu. Mas seria realmente previsível uma tal catástrofe (que, em tal caso, condenaria em absoluto os responsáveis políticos nacionais)?
Como se sabe, a guerra teve um papel decisivo no rápido desenvolvimento de novas tecnologias. Isso verificou-se com a aviação, tal como aconteceu também relativamente ao submarino e a outras armas sub-aquáticas. No conflito que ensanguentou a Europa entre 1914 e 1918 assistiu-se à pesarosa conjugação de concepções militares tácticas exercitadas desde um passado remoto (fortíssima densidade de combatentes lutando face-a-face por cada “palmo de terreno”) com a novidade de armas de destruição muito mais poderosas (a metralhadora, a artilharia pesada, os gases, as bombas de aviação e os “tanques”) e de meios de deslocação e comunicação mais rápidos: os referidos aviões (no reconhecimento do terreno e do inimigo, e no seu bombardeamento); os camiões para transporte de homens e abastecimentos, bem como para a evacuação de feridos; as bicicletas e motocicletas, os telefones e a TSF para a transmissão de ordens e informações – com o declínio correspondente do cavalo e de todo o instrumental e saberes ligados ao seu uso militar.
Esta guerra também acelerou os ensaios já em curso de uma nova organização do trabalho industrial, em grande série. A racionalização “taylorista” dividiu ao máximo as tarefas do operário, simplificando-as, à custa de maior monotonia, mas tornando-as acessíveis a qualquer um, sem formação prévia. Deste modo puderam entrar na fábrica mulheres, camponeses, imigrantes e outros até então estranhos ao universo mecânico da indústria. E o mesmo se fez em breve na Rússia dos bolcheviks. Em paralelo avançou a mecanização da agricultura, rentável em planícies e para produção em grande escala. E no mundo dos escritórios instalou-se uma burocracia administrativa procedimental mais rígida, hierárquica e rigorosa, embora propícia ao encorajamento de diversos “vícios”, em proveito “do sistema” e não especialmente dos objectivos oficialmente perseguidos. No sector do comércio, o “grande armazém” de vendas a retalho (por departamentos de famílias de produtos) já tinha aparecido no século anterior; mas enquanto este resistiu às crises provocadas pela guerra e o pós-guerra, a pequena loja de comércio foi muito atingida pelas novas condições económicas, o mesmo acontecendo com inúmeras oficinas de artesãos. Daí uma “proletarização” acelerada da pequena-burguesia.
Como consequências de grande magnitude desta Iª Guerra Mundial (que, contudo, se focou essencialmente no espaço europeu) podem evidenciar-se as seguintes: -primeira experiência de revolução e de construção de uma sociedade socialista estatal (a URSS); -reacções nacionalistas autoritárias em Itália e na Alemanha, mas também na Hungria, na Roménia, em Espanha, Portugal, Brasil ou Argentina, devido às humilhações sofridas com a guerra, ao descrédito do parlamentarismo liberal e a uma virulenta rejeição anti-comunista; -envolvimento de muitos soldados dos territórios coloniais das potências europeias nesta guerra, com milhares de mortos e estropiados e sem qualquer proveito para os seus países-natais (lição que eles não irão esquecer); -criação de uma estrutura supra-nacional de manutenção da paz (a Sociedade das Nações, com sede em Genebra), que se mostrou completamente ineficaz, com excepção do seu “departamento social”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, apesar das dificuldades de entendimento social e político, pôde contribuir para a melhoria da condição universal dos trabalhadores assalariados; -crise económica e financeira de grande profundidade nos anos 20/30, que inclusivamente obriga a uma intervenção estatal na economia nos Estados Unidos e leva os governos das principais potências a nova corrida armamentista como meio de absorverem o desemprego e se precaverem contra uma eventual desforra da Alemanha.
Com efeito, a sedução das massas por um fanático como Hitler relançou em poucos anos o “III Reich” numa rota imparável de mobilização, propaganda, violência, expansionismo e ânsia de domínio do espaço europeu e mesmo mundial. Tendo usado a desgraçada guerra civil de Espanha (1936-39) como campo de manobras para as suas novas tácticas militares (panzers e “guerra-relâmpago”, bombardeamentos aéreos maciços, combates de “caças”, etc.), negociado um tratado vergonhoso (para os comunistas) com a vizinha URSS sobre as costas do povo polaco e encontrado nos judeus o “bode expiatório” que ele acabou por levar à loucura do Holocausto, o Fuhrer julgou-se suficientemente forte para desencadear uma nova guerra, extremamente mortífera, contra as democracias ocidentais em Setembro de 1939 e, em Junho de 1941, também contra a URSS. A seu lado esteve a Itália e as forças que conseguiu mobilizar nos países que ocupou (voluntariamente ou à força); e a partir de 1942 contou também estrategicamente com o Japão que abriu guerra no Extremo-Oriente, oceano Pacífico e Sueste Asiático contra os aliados ocidentais, que se apresentavam como defensores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos: estes foram, essencialmente, os ingleses (e países do Commonwealth) e os americanos, a que se juntaram os franceses que não aceitaram a rendição do seu governo em 1940 e outros resistentes de países ocupados pelos alemães; pela força das circunstâncias, também a URSS deu um importante contributo a esta aliança contra-natura com os países demo-liberais.  
A IIª Guerra Mundial foi ainda mais devastadora do que a primeira. Mas a resiliência defensiva dos russos, a indomável combatividade dos britânicos e a capacidade produtiva e escala de mobilização humana da nação americana foram suficientes para parar na Europa os avanços germânicos e os levar à derrota militar, na qual ficou também patente a sua falta de poder naval, a despeito da encarniçada guerra submarina em que se haviam de novo lançado. No Pacífico, a resistência militar dos japoneses ao contra-ataque americano foi mais eficaz, pelas condições geográficas desse teatro de operações e sobretudo pelo espírito guerreiro e patriótico da casta militar nipónica, tendo o governo dos Estados Unidos acabado por decidir o emprego da ainda experimental bomba atómica em Agosto de 1945 para abreviar o fim do conflito. O Japão, a quem faltavam fontes energéticas básicas e matérias-primas para a sua indústria, tinha-se tornado uma potência expansionista e agressiva que ocupara militarmente a Manchúria (1932) e levara depois a guerra à China (1937), e finalmente ao ataque-surpresa a Pearl Harbor (Dezembro de 1941), à Indochina, às Filipinas e às colónias inglesas e holandesas da região. Mas aquela polémica decisão – que muitos vêem como a vontade dos americanos mostrarem ao mundo a sua superioridade militar – acabou por marcar o início da “era atómica” e lançar uma nova corrida armamentista, agora entre os Estados Unidos e a URSS, dois dos aliados vencedores da IIª Guerra Mundial, mas com sistemas políticos e económico-sociais bem diferenciados e mutuamente hostis.
Desta vez, a derrota militar do “eixo” não levou à humilhação externa dos vencidos, em vez disso bastando o castigo exemplar dos principais chefes, uma auto-infligida culpa moral assumida pelas populações e a imposição cautelar de determinadas condições de regime político (democrático) e de forças armadas (defensivas). Pelo contrário, os americanos ajudaram economicamente a reconstrução desses países, assentando neles uma boa parte da sua posição dominante no meio século que se seguiu.
O pós-guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas, os acordos de Bretton-Woods, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e um longo período de recuperação e crescimento das economias ocidentais com base na reposição das cidades destruídas (para as indústrias de bens de equipamento) e no alargamento do mercado interno (para a produção de bens de consumo duráveis, como os electrodomésticos e o automóvel), não foi contudo isento de conflitos internacionais, bem longe disso. Apenas deixaram de ser guerras formalmente declaradas e formalmente encerradas com tratados de paz entre os beligerantes, assumindo geralmente o carácter de conflitos localizados ou específicos. Tudo isto se passou no quadro da “guerra fria” entre o bloco socialista liderado pelos russos e o chamado mundo livre, sob a tutela dos americanos, com a organização militar da NATO como guarda avançada. E começou com a ocupação pelas tropas do Exército Vermelho de quase todos os países da Europa central e oriental na sua ofensiva final sobre a Alemanha, a que se seguiu a imposição de regimes políticos de “democracia popular” da sua cor, sem liberdades cívicas ou políticas, com a divisão da própria Alemanha e o estabelecimento de uma “cortina de ferro” entre o Leste e o Ocidente. 
Esta divisão ideológica e militar-estratégica rapidamente tomou contornos globais. Estáline, que dominava sem qualquer oposição interna, viu o seu bloco europeu reforçado em 1949 com a vitória dos comunistas chineses na guerra civil que se reacendeu no país após a derrota do Japão, não hesitou em ajudar a facção “vermelha” na guerra da Coreia (1950-53, mas que deixou o país dividido até hoje), perdeu a guerra civil na Grécia (1946-49) mas encorajou os fortes partidos comunistas de França e de Itália a ocuparem o máximo possível de posições de poder aproveitando o prestígio da sua mais recente condição de resistentes contra os alemães, mesmo depois de terem deixado de fazer parte dos governos saídos das respectivas libertações nacionais. Mas ambos os blocos tinham contradições interiores, ou que os atravessavam a ambos. A URSS defrontou-se com a dissidência dos comunistas jugoslavos chefiados por Tito (1948) e teve de reprimir pela força insurreições de húngaros em 1956 e de checoslovacos em 1968. Por seu lado, em 1948 Israel proclama a sua independência e logo rebenta uma primeira guerra com os árabes da região; apesar da simpatia geral do movimento socialista para com a causa hebraica, o conflito de soberanias israelo-árabe que aqui se origina vai dividir as principais potências, com o Ocidente (e sobretudo os americanos) a apoiarem os judeus e o bloco de Leste a apostar na causa dos árabes. E Portugal, governado desde 1926 por uma ditadura com fortes simpatias nazi-fascistas mas que mantinha a sua aliança com a Inglaterra, cedera bases nos Açores aos aliados (1943-44) e preservava importantes colónias africanas, acabou por entrar como membro fundador da NATO (1949), graças à sua posição geo-estratégica e à firme determinação anti-comunista do seu governo (gozando também da fama de ser uma “ditadura branda”). 
De facto, no auge da “guerra fria” a política externa americana não olhou a meios para tentar evitar que novos países caíssem sob a influência da URSS. Por exemplo, logo nos anos 50 celebrou um tratado de cooperação militar com o regime ditatorial do general Franco para a instalação de bases aéreas em Espanha. E apoiou os governos saídos de golpes militares em diversos países que se posicionavam contra a “subversão comunista”, incluindo os casos do Brasil em 1964, da Grécia em 1967, do Chile em 1973 e da Argentina em 1976 (onde os generais quiseram afastar o que restava do regime populista-direitista, mas nacionalista e anti-americano, de Perón). A perda de Cuba para o “outro lado” em 1959 levou Washington a sustentar, militar e financeiramente, na América Latina vários regimes deploráveis, do ponto de vista dos direitos humanos.
Neste período de expansão económica do pós-guerra, os países de cultura ocidental experimentaram evoluções sensíveis nas suas condições de vida, com os sindicatos de trabalhadores, bem implantados nas empresas e com forte poder de pressão e negociação, a conseguirem aumentos de salários sustentáveis e outras melhorias, embora por vezes também se prestassem a servir de alavanca para ideologias e objectivos políticos. E o movimento feminista conheceu uma segunda vaga de reivindicação internacional, denunciando o papel subordinado da mulher na sociedade e nas leis, praticando o birth control (de que o planeamento familiar acabou por ser a forma mais inócua) e reivindicando o acesso a todas as profissões bem como a paridade salarial em relação aos homens com a mesma qualificação. Um incremento muito notável nos níveis de escolarização dos jovens, a laicização da vida pública, o apagamento do mundo rural e o desenvolvimento das actividades de lazer na esfera urbana marcaram também decisivamente esta segunda metade do séc. XX.  
Mas, naquela época do pós-guerra, o quadro de afrontamento Leste-Oeste mais significativo ocorreu “por interposta pessoa” no âmbito do processo de descolonização, em África e no Sueste Asiático, antes e depois da “crise de Suez” (1956), antes e depois da aguda “crise dos mísseis” em Cuba no Outono de 1962, em que o mundo terá estado à beira de uma guerra nuclear – o que, diga-se de passagem, relançou o movimento pacifista internacional que, de certa maneira, foi o sinal anunciador da revolta libertária da juventude que culminou no movimento de Maio de 1968 em França.
Com efeito, tirando as lições do sacrifício da vida dos seus filhos aos interesses das potências coloniais na anterior guerra mundial, os movimentos nacionalistas ou emancipadores dos povos sob tutela europeia souberam neste segundo pós-guerra impor a condição da obtenção das suas independências nacionais para as ajudar no novo conflito. E, à parte as guerrilhas no Kénia e na Malásia, a Inglaterra compreendeu que soara a hora dessa alforria concedendo logo em 1947 a independência à Índia (que então se separou litigiosamente do Paquistão), e nas décadas de 50/60 às suas colónias africanas, sem mais efusão de sangue. E até a União Sul-Africana (“branca”) e a República da Irlanda acabaram por cortar os seus laços com Londres nesta decorrência emancipatória. Idêntico caminho seguiram a Holanda e a Bélgica. Mas não a França, que procurou defender militarmente as suas colónias indo-chinesas e acabou derrotada em Dien-Bien-Phu em 1954; e que sustentou uma difícil e complicada campanha na Argélia que só terminou com a concessão da independência em 1962, à custa da subida ao poder do general de Gaule e do estabelecimento de uma nova constituição, “semi-presidencialista”, bem talhada à sua medida (a Vª República, que se mantém em vigor). As suas restantes colónias beneficiaram desta luta e na década de 60 todas elas se tinham tornado estados independentes.
O movimento de descolonização revelou-se como uma etapa histórica inevitável. Herdou as abnegadas campanhas de desobediência civil de Gandhi na Índia e alguns contributos dos idealistas movimentos pan-africanos e pan-arábicos; mas também deu vazão aos apetites de poder das novas classes dirigentes locais, fosse na versão de burguesias proprietárias dos instrumentos de riqueza deixados pelos colonizadores brancos, fosse enquanto profissionais qualificados e burocratas de Estado com capacidade de mando. Em ambos os casos, assenhorearam-se de boa parte do produto nacional em prejuízo da esmagadora maioria da população, que continuou muitas vezes miserável, e puseram-se como intermediários externos dos países de que ainda dependiam, económica ou politicamente.
De facto, a conferência de Bandung (1955), que parecia ser o momento fundador de um genuíno “não-alinhamento” das nações recém-descolonizadas com qualquer dos dois blocos rivais da “guerra fria”, acabou por se revelar mais um embuste político, com os governos dos países signatários a deixarem-se cada vez mais instrumentalizar pelas orientações políticas do Kremlin, tanto nas suas relações económicas ou militares como nas votações nas Nações Unidas e em outros areópagos internacionais. Mas, verdade seja que a partir da década de 60 a coesão do bloco de Leste foi quebrada por um insanável conflito ideológico surgido entre russos e chineses no seio do movimento comunista mundial – o que obviamente favoreceu o bloco oposto. A unidade entre as novas nações também não resistiu a alguns conflitos económicos, de religião ou ideologia política: veja-se a separação litigiosa do Bangladesh relativamente ao Paquistão ocidental (1971), a guerra Irão-Iraque (1980-88) ou a invasão do Kuait pelo Iraque (1991). Finalmente, a conjugação de interesses entre o “3º mundo” e o bloco socialista sofreu um rude golpe quando a URSS invadiu e se lançou numa guerra sem glória no Afeganistão (1979-89).
E os Estados Unidos, que sempre tinham apoiado a causa da emancipação dos africanos, na lógica de contrariar o avanço do bloco de Leste, acabaram por se envolver no Vietnam numa guerra para a qual não tinham as armas adequadas nem a vontade dos seus jovens, e que acabaram por perder em 1975; como exactamente na mesma altura viram cair a resistência que o governo português opunha em África à independência das suas colónias, assistindo a mais um alargamento do espaço de influência de Moscovo.
Por outro lado, a resistência do “poder branco” (sobretudo de franceses, portugueses, americanos; e sul-africanos ou israelitas) em abandonar as suas posições imperiais ou de defesa do seu “último reduto” teve um outro efeito muito negativo: o de estimular o desenvolvimento das técnicas de guerra subversiva e, mais tarde, do chamado terrorismo internacional. São modelos de conflito “assimétricos”, em que à fraqueza militar de uma das partes se contrapõe o recurso a formas de actuação consideradas ilegítimas (moral ou legalmente) pela outra parte, que assim fica inibida de as combater no mesmo terreno. As técnicas psicológicas da propaganda para “conquistar as massas” são aqui usadas com tanta eficácia como as técnicas bélicas da guerrilha, do terrorismo, da tortura ou das “lavagens de cérebro”. E o resultado destas “guerras subversivas” – que sempre acabaram por sair vencedoras no terreno – foi o de uma descodificação e desregulação do direito da guerra (que o séc. XIX tinha laboriosamente posto de pé) que desmoralizou ambos os contendores. E, a prazo mais ou menos curto, levou à instauração de novos regimes opressores nos países libertados, ou então de guerras civis entre suas facções, tribos ou regiões.
Em todo o caso, nos territórios colonizados pelos ingleses e que não viveram este tipo de guerras de libertação nacional, como a Índia, a África do Sul ou a Namíbia, os progressos económicos e sociais foram sensíveis para os respectivos povos e os seus nacionalismos geralmente menos agressivos para com terceiros. Nestes (e noutros) casos, as independências constituíram-se como modos de consolidação de uma consciência de nação – capaz de se apresentar ao mundo enquanto tal, com cultura e identidade próprias –, que até então era ténue ou mesmo inexistente.
Entretanto, a partir de 1974, surge uma nova dinâmica promotora dos regimes políticos democráticos, com a queda da ditadura em Portugal, depois na Grécia, em Espanha, no Brasil e em outros países da América Latina. E uma segunda vaga acontece a partir de 1989 nos países do centro e leste da Europa, após a destruição pacífica do “muro de Berlim”.
Deve acentuar-se que a segunda metade do séc. XX conheceu processos de aceleração e mudança extraordinários, em quase todos os planos.
No domínio da ciência e da tecnologia, a utilização pacífica da energia nuclear constituiu desde logo uma alternativa para a produção eléctrica, embora com elevados níveis de risco, que já afloraram em acidentes graves nos Estados Unidos, na antiga URSS ou mais recentemente no Japão e que foram uma das motivações fortes para o surgimento de um novo movimento social (transnacional), dito ecologista, que desde há meio-século pugna, através de meios essencialmente não-violentos, por um maior respeito pela natureza, a conservação da biodiversidade, a redução das poluições e dos desperdícios, com um urbanismo e uma actividade agrícola, extractiva e industrial menos agressivos para o ambiente.
Mas a electrónica, uma mecânica muito mais elaborada e precisa, a química e a disponibilização de novos materiais (plásticos, fibras artificiais, carbonos, etc.) modificaram grande parte dos artefactos e produtos de uso corrente, da maquinaria e outros equipamentos, tornando-os mais baratos e reduzindo muito o uso da lã, do algodão, da borracha, da madeira ou do aço. A indústria espacial tornou-se uma realidade – apenas ao alcance de três ou quatro grandes potências. Mais barata e interessante para quem pretende modelar os comportamentos humanos foi a evolução experimentada pelos mass media. Se a rádio tinha sido um instrumento privilegiado de influenciação das massas pelos totalitarismos antecedentes, a televisão tornou mais fascinante e subtil tal possibilidade de condicionamento, tanto com objectivos lucrativos (sobretudo através da publicidade) como com intuitos políticos ou de luta pelo poder com legitimação democrática. E nos últimos anos do século iniciou-se uma nova era, com a difusão mundial da informática e das telecomunicações electrónicas potenciadas pelos satélites, agora ao alcance de qualquer cidadão, desde que já minimamente “letrado” nestas novas linguagens e formas de comunicação, essencialmente áudio-visuais. Segundo os conceitos sociológicos vigentes, o mundo tem vindo cada vez mais a funcionar “em rede”. E a transferência de grandes volumes de trabalho da agricultura e da indústria para o “terciário” teve consequências insuspeitadas: nestas sociedades, as pessoas têm agora as mãos mais higiénicas e cuidadas para poderem entregar-se a gestos mais finos e delicados.
A bio-química e a medicina conheceram nestes anos progressos espectaculares, permitindo o aumento da esperança de vida e mesmo desafiando convicções humanas seculares. Sobre esta base material e técnica, a vontade libertadora e de conquista humana agora potenciada pela melhoria do bem-estar e pelo clima de liberdades cívicas e consignação de direitos presentes nas democracias liberais evoluiu paulatinamente para um modelo civilizacional de afirmação individualista, hedonista e violador de todo e qualquer tabu socialmente estabelecido. A sexualidade foi um terreno de excelência para a propagação de novos comportamentos. A criação cultural e artística, um motor da sua difusão mais alargada e legitimada. Os espectáculos de massas, uma sua privilegiada manifestação colectiva.   
Embora por vezes travado por crises, o sistema económico catapultou-se em ritmos de crescimento económico elevados, mas beneficiando muito desigualmente os diversos actores sociais e os diversos países e regiões do globo. O abaixamento das barreiras alfandegárias e a concorrência, cada vez mais ampla, tendeu à criação de uma economia muito baseada no consumo das populações e no crédito. E foi este processo que, no fundo, ditou o colapso final das economias socialistas do Leste, incapazes de acompanhar o dinamismo dos mercados no Ocidente, alicerçados na liberdade individual e no reconhecimento amplo de direitos, num tempo em que a escolaridade e a informação permitiam a cada um ter uma visão do mundo mais e mais abrangente. Mas a evolução social e política destes países de Leste ainda não está completamente clarificada, entre as expectativas de enriquecimento do padrão de vida ocidental e as suas desilusões, ou as nostalgias do seu “Estado-social” e da sua influência política mundial. Também as “vanguardas” políticas e culturais no Ocidente que seguiam, mais ou menos fielmente, tal modelo de “socialismo realizado” ainda não digeriram completamente esta reviravolta histórica.
A “queda do comunismo” na Rússia e países vizinhos processou-se por “implosão”, da qual a China pôde fugir devido ao facto de, com antecipação (a partir dos anos 70), ter corrigido drasticamente a sua trajectória e ter “inventado” uma progressiva mas avassaladora entrada na economia capitalista de mercado – interna e externamente –, ao mesmo tempo que conservava com mão férrea a concepção marxista-leninista-maoista do partido único e da restrição das liberdades individuais ou sociais. Hoje, é vista como a grande potência em ascensão, fazendo centrar sobre o Pacífico a área geo-política mais decisiva do próximo futuro e, de certa maneira, liderando o conjunto de grandes países que conseguiram entretanto progressos de desenvolvimento assinalável, como a Índia, a África do Sul, o Brasil e outros. 
Nos últimos anos do século XX temeu-se o “império” (económico, militar e cultural) da única super-potência sobrevivente (os EUA), a hegemonia de um “pensamento único” ou, pelo contrário, acreditou-se numa vitória final e definitiva da democracia. Mas foram ilusões rapidamente erodidas pela realidade. O mundo árabe-islâmico afirmou-se na cena internacional por diversos modos, e sempre em posição de desafio ao Ocidente: com o controlo das suas riquezas petrolíferas; com um invejado uso capitalista da economia dos petrodólares; com uma demografia vigorosa e uma juventude muito mobilizável; com uma integração cultural que já desapareceu no Ocidente (e mesmo no espaço ex-socialista do Leste); e com minorias politicamente fanáticas, prontas a vingar um contencioso histórico de séculos, que se julgaria já resolvido pela Modernização.
A finalizar o século XX, uma economia globalizada e o salto tecnológico e cultural que potenciou a “sociedade da informação” levantam tantos problemas quantas as perspectivas aliciantes que parecem abrir. Uma consciência universalista é hoje mais palpável e largamente perceptível em inúmeras fracções das classes médias urbanas, independentemente dos países em que vivem e de culturas que permanecem ancoradas a realidades sociais diversas, ou até mesmo de vivências espirituais muito fragmentadas. Mas as instituições internacionais (da ONU ou outras) há anos que parecem bloqueadas pelo sistema de relações inter-estatais existente e não está à vista qualquer tipo de “governo mundial”. Esta é talvez a contradição fundamental dos tempos actuais.  
No Ocidente, e particularmente na Europa, a experiência de uma sociedade de abundância e de um Estado-providência parece ter desgastado o discernimento e capacidade de afirmação dos povos com base nos seus melhores valores morais e culturais. A construção europeia surgia como um projecto aliciante para, respeitando as identidades de cada um, levantar um espaço amplo de cooperação que superasse as rivalidades do passado histórico e lograsse uma projecção externa multidimensional (e não, como habitualmente, exclusivamente fundada na economia e no poder militar). Porém, ela tem sofrido sucessivos solavancos, com saltos-para-diante porventura pouco acautelados (integração, alargamento) e algumas reacções negativas por parte dos poderes nacionais (o Reino Unido, a recusa da Noruega, a divisão conflitual dos Balcãs, a “inter-governamentalização”, o “directório” dos mais fortes, etc.), com aproveitamento dos benefícios por parte das populações mas também – devemos reconhecê-lo – com um seu inquietante alheamento perante as possibilidades que lhes estão franqueadas e as responsabilidades que lhes cabem, enquanto cidadãos.
JF / 12.Jun.2015

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