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sexta-feira, 28 de abril de 2017

Entre Abril e Maio

No termo das ansiedades pelos resultados eleitorais franceses e em plenas rotinas comemorativas das memórias abrilistas e “primeiro-maioistas” de uma parte dos portugueses, soube bem ler vários dos textos de opinião publicados na imprensa. O equilíbrio, a lucidez e a racionalidade estiveram presentes nas páginas do Diário de Notícias de 26 de Abril e, muito particularmente, na edição do Público do mesmo dia, colocando-se a contrario das críticas de abaixamento geral da qualidade que eu próprio havia julgado detectar há algum tempo atrás.
Manuel Carvalho, em «Confortáveis na placidez de Abril», dá perfeitamente conta deste sentimento, ao não calar nenhuma das nossas insuficiências estruturais – da política à economia ou às atitudes sociais – e, ao mesmo tempo, ao assinalar o contraste com as exacerbações e receios que pululam à nossa volta. Sim, esta “placidez” compara com o comportamento daqueles que se eximem de exprimir a sua opinião política (dado que todos temos uma, seja ela qual for) porque, no fundo, estão confiantes no funcionamento “do sistema”; com ou sem a sua participação, sabem como conduzir-se e planear a perseguição dos seus objectivos próprios ou a defesa dos seus interesses mais directos – como Roma dormia descansada quando os seus centuriões velavam pela guarda das províncias do império.
Porém – porém!... –, vale a pena não esquecer três coisas: é muitas vezes em plena paz de auto-contemplação que rebentam borrascas que a todos apanham desprevenidos. Optimismo não falta aos actuais porta-vozes governamentais e de Belém não cessam as mensagens de reforço da auto-estima nacional, mas o turismo (que tanta animação trouxe aos centros das nossas principais cidades) é uma flor frágil que se quebra ou seca com facilidade e as empresas tecnológicas e exportadoras com que procuramos relançar a nossa base produtiva estão sujeitas às mais instáveis condições de financiamento e endividamento externo – não esquecendo o lastro pesadíssimo das nossas classes pobres, que sofrem directamente essa condição e se constituem como assistidos perpétuos do Estado-providência (sem que todavia este constitua aliciante bastante para atrair maciçamente outros dos mais desgraçados do planeta, que tentam nos países ricos da Europa ou nos Estados Unidos a fuga à sua precária ou miserável situação). Em segundo lugar, suspeita-se que muito da actual aparência de consenso em torno do nosso Estado-social-de-direito-democrático possa ser meramente conjuntural e também ilusória: a auto-congratulação dos sobreviventes do “abrilismo” pode mostrar um genuino afecto e superação das clivagens passadas, mas mantêm-se os sinais e a memória da incompatibilidade absoluta entre os adeptos de um Estado-Leviatã de essência ditatorial, ainda que compreensivo e temperado nas suas concretizações (além disso, congregador de inúmeras boas-vontades e justificações sociais) e, por outro lado, aqueles que não cedem nos valores da liberdade e na procura de justiça, ainda que tais desígnios tenham de ser condicionados e sujeitos ao escrutínio do princípio-da-realidade e das condições históricas existentes. (Ontem, este enfrentamento punha-se em relação ao conflito Leste-Oeste, ainda que este fosse perturbado e desfocado pelos interesses próprios de alguns poderes dominantes; hoje, ele pôr-se-á perante novos confrontos civilizacionais, com desafios tecnológicos e económicos ainda mal percebidos e modos de acção política completamente fora do quadro de normas, valores e referências a que os últimos dois ou três séculos nos haviam habituado). E em terceiro lugar importa não esquecer que o “país político” é ainda (ou já) uma minoria da população residente: de facto, a maioria situa-se “à margem” dos problemas que afectam a nossa sociedade (ainda que por desfastio compareça nas assembleias de voto), seja porque as pessoas se fixam quase exclusivamente no âmbito inter-individual onde podem pesar e ser reconhecidas, seja porque se encontram desimplicadas, social ou culturalmente.
Igualmente interessante (embora muito mais focada e especializada) é a perspectiva que nos é dada na mesma edição daquele jornal por um texto de João Moreira Rato intitulado «A importância de criar uma dinâmica positiva para a dívida».Tratando-se, sem dúvida, de uma das dificuldades estruturais que pesam sobre a sociedade portuguesa, tal questão investe simultaneamente o papel e a performance do Estado (insuficiente para uns, excessivo para outros, mas sempre tradicionalmente deficiente) e os termos da nossa relação com o exterior, hoje absolutamente determinante para a satisfação da população e sustentação do seu futuro. 
O artigo «As estatísticas oficiais e a nova ciência de dados», do professor Pedro Simões Coelho (da Universidade Nova de Lisboa), alerta-nos de maneira muito judiciosa para os problemas que estão a ocorrer nesta área. Escreve ele que «os métodos tradicionais que suportavam as operações estatísticas (largamente baseadas em inquéritos) apresentam limitações crescentes que se prendem com as cada vez maiores taxas de não-resposta a inquéritos, com a necessidade de aliviar o esforço que é exigido a cidadãos e empresas ao participar nestas operações, com a falta de flexibilidade das mesmas, com os elevados custos que estas acarretam». Pessoalmente, como sociólogo, já há anos eu pressentira estas dificuldades. Agora, quando no espaço público se discute fundamentalmente com base em dados estatísticos e em sondagens de previsão (altamente susceptíveis a “manipulações”, precisamente por causa da sua aparente objectividade), o problema é ainda mais relevante, afirmando este autor que urge «uma dramática alteração na produção estatística, que envolve todas as etapas do processo, desde a recolha de dados até à disseminação da informação», apostando ele numa maior utilização de dados administrativos e em outras técnicas derivadas da informatização que a todos nos constrange.
Paulo Ferrero (do Forum Cidadania Lx), assina um texto acerca da coerência urbana ameaçada no caso de um novo plano municipal em zona histórica da capital – «Ainda e de novo a Praça-Mesquita da Mouraria» – onde, com fundamento, se insurge contra aqueles que querem desfigurar uma «cidade consolidada, uma cidade que […] não precisa nem de recriações nem de rasgos de autor ou de rasgões que o firam para sempre».
Vale ainda a pena encarar com espírito de análise crítica a sinópse que o mesmo jornal fez (a páginas 24) dos programas eleitorais com que Emmanuel Macron e Marine Le Pen se vão apresentar à 2ª volta das eleições para a presidência da república de França. Ao olhar para tais programas prometidos, o cidadão comum poderá ver principalmente diferenças quantitativas para o próximo quinquénio: Le Pen promete taxar certas empresas e importações para se “consumir mais francês”, reduzir em 10% os três escalões mais baixos do IRS, limitar a 10 mil por ano o número de novos imigrantes, contratar 15 mil polícias e construir prisões para mais 40 mil reclusos; Macron anuncia 50 mil milhões de Euros de investimento público, poupanças de 60 mil milhões na despesa do Estado, reduzir o número de alunos por turma e estimular materialmente os professores, aumentar o orçamento da defesa para 2% do PIB, contratar mais 10 mil polícias e criar 15 mil novas vagas nas prisões. Evidencia-se que ambos vão actuar sobre a segurança e sobre o reforço dos controlos fronteiriços. Mas é sobre a orientação política de cada um destes candidatos que se joga efectivamente o destino a curto prazo da França e da Europa. Entre o explicitado e o não-dito, percebe-se que a União Europeia e a preservação do eixo Paris-Berlim estão no âmago da proposta de Macron (outra coisa será ver em que condições partidárias e internacionais ela poderá ser passada à prática), enquanto a dessolidarização em relação à UE, o proteccionismo e as ambiguidades relativamente à futura política externa francesa (NATO, Rússia, EUA, francofonia, etc.) marcam decisivamente o discurso da senhora Le Pen. Já se adivinha quem será o vencedor desta contenda, ainda que a indicação pró-abstenção do esquerdista e “soberanista” Mélanchon venha a causar amargos de boca a muita gente. Mas, para além das insuperáveis dificuldades que o regime constitucional e o panorama partidário francês venham a criar após as eleições legislativas de Junho, é de realçar o posicionamento centrista e social-liberal do candidato moderado – talvez a única posição racional no meio da esquizofrenia geral que parece atingir aquele país –, bem como a ruptura realista da sua proposta de reduzir em um terço o número de deputados e senadores, e limitar a um máximo de três o número de mandatos eleitorais. Pode parecer pouco mas, para quem conhece a cultura política francesa, será certamente interpretado como um passo na boa direcção para a regeneração dos anquilosados processos que, em geral, estão atingindo todos os regimes democráticos nesta época de globalização.        
Finalizando, em tom de polémica, refiro o programa passado no mesmo dia 26 na RDP1 «O Amor É», com Júlio Machado Vez e Inês Maria Menezes. O tema do dia prendia-se com a repressão sofrida por um homossexual em país de cultura islâmica. Naturalmente, seria de verberar tal procedimento, mas daí a aproveitar a deixa para mais uma acção de propaganda desta “causa fracturante” vai um enorme passo. Em geral, foram as Esquerdas dos países mais ricos que, à falta de operários para mobilizar contra o patronato, enveredaram pela exploração dos direitos ditos de terceira geração, sem se preocuparem com o facto de estes nada dizerem ou mesmo ofenderem os sentimentos da grande maioria das populações do globo, na América Latina, na Ásia e na África, com culturas, religiões e modos de vida bem distintos. Julgo que a “máxima universalização possível” foi atingida com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, na conjuntura especial do pós-guerra que então se vivia. Em tal documento se proclama a inviolabilidade da vida humana, a igualdade civil, o direito a uma pátria nacional, à liberdade de pensamento e expressão, de movimentação, também de religião e de constituição de sindicatos e várias outras garantias que os instituintes acharam que deviam fazer parte do património comum da humanidade. Sabemos como mesmo esta carta de direitos fundamentais encontra ainda hoje dificuldades para ser razoavelmente observada. Por isso, Machado Vaz poderá defender as ideias que quiser (ainda que fossem fascistas ou bolchevistas, embora estas últimas há tempo que circulam com rédea livre) mas faria melhor em prescindir do qualificativo de Professor com que é publicamente apresentado. Ou acha que é incontestavelmente a Ciência que dita as suas tomadas de posição?

JF / 28.Abr.2017

sábado, 22 de abril de 2017

Avatares sociais e tecnocráticos, imersos em paradigma liberal

É muito forte (ainda) em Portugal a reprodução das posições sociais de relevância – em termos de riqueza, capacidade de influência ou visibilidade pública – dentro das mesmas linhagens familiares, redes de amizade ou compadrio, ou ainda (fenómeno mais recente) dentro das mesmas formações partidárias e/ou organizações “secretas” da sociedade civil. Trata-se, em todos os casos, de uma certa apropriação privada de poder social.
Isto não deve confundir-se com a reprodução familiar e endogâmica de profissões de elevado estatuto social, como são ainda os médicos, os diplomatas, os juízes e mesmo os advogados, ou como já foram os engenheiros e os militares, porque aqui o fenómeno em causa é sobretudo o da persistente estratificação que dificulta a mobilidade social.   
Dois exemplos: os descendentes dos restos da aristocracia portuguesa estão praticamente todos convertidos ao negócio. Beneficiando por vezes de bens de raiz herdados, sejam propriedades rústicas ou urbanas, convertem-nas em empresas para dar lucro (arrendamentos, explorações turísticas, etc.) ou vendem-nas no mercado em boas oportunidades que a conjuntura ou a evolução lhes oferece. Além do esmero da educação familiar, foi-lhes permitido naturalmente efectuar estudos avançados, geralmente com boas classificações (aproveitando adequadamente a superior bagagem cultural herdada). E com a ajuda das redes extensas de conhecimentos inter-pessoais no seio das elites, souberem identificar que o tempo da mera exploração rendeira das propriedades fundiárias havia passado, tomando então decididamente o partido do risco, da iniciativa no campo da economia e do domínio indispensável dos novos instrumentos técnicos de comunicação, pesquisa e gestão –, às vezes mesmo inserindo-se em equipas internacionais de ciência, ou em estruturas de cultura ou espectáculo-lazer de elevado padrão embora de sucesso aleatório. É por isso que encontramos com frequência apelidos “sonantes” da velha sociedade portuguesa no topo de uma grande empresa multinacional, como curadores reconhecidos nos mercados-da-arte ou a pilotar pessoalmente um caríssimo veículo em competição mundial.   
Os trisavós aristocratas ou muito ricos limitavam-se a velar pelas propriedades já herdadas e se possível a acrescentá-las com os bons casamentos da descendência. Os actuais herdeiros são activos empreendedores que não hesitam em correr os riscos do mercado, com vista à criação de valor e tentando não perder as novas oportunidades que a economia oferece.
Nestes termos, apesar da indiscutível ascensão – por via da escola – de inúmeros “filhos do povo” aos cargos mais cobiçados e bem remunerados nos diversos sectores da sociedade (nas empresas, no espectáculo, na investigação científica, na política, etc.), também é verdade que raros são os descendentes das “classes altas” (aristocracia, grande burguesia, latifundiários) que soçobram e decaem na escala social, em termos absolutos e relativos – distinguindo-se aí muito claramente do que aconteceu com a velha “classe média” (de funcionários, proprietários e outros “remediados”) e sobretudo com uma fracção muito significativa da pequena burguesia, sobretudo no comércio, artesanato e agricultura.
Mas há também um segundo caso exemplificativo, situado no outro extremo da escala social. Como bem se sabe, a miséria material verdadeira passa de pais para filhos, tal como os destrambelhamentos comportamentais. Dantes, era o abuso do álcool, o escorraçamento dos lugares públicos e os maus-tratos infligidos por polícias e meios carcerais! No nosso tempo, vieram as drogas, a marginalização social, o fracasso escolar ou o desemprego prolongado! Sempre, os desajustamentos psíquicos, os traumas afectivos, a cadeia-de-ocorrências-infelizes ou então vícios como os jogos-de-azar que destroem vidas e danificam o ambiente social!
Que haja 20 ou 30% da população em situação ou risco de pobreza, numa sociedade situada no espaço privilegiado que constitui a Europa, é, certamente, um muito mau score de desempenho social. Mas que esses "pobres” tenham fortes probabilidades de “transmitir” tal handicap aos seus filhotes é ainda muito mais injusto. 
Uma maior mobilidade social não resolve o problema estrutural das excessivas desigualdades socioeconómicas, mas atenua os seus piores efeitos. Nas últimas décadas, isso verificou-se por um conjunto de circunstâncias e factores favoráveis: desbloqueamentos permitidos pelo “saltar-do-ferrolho” do 25 de Abril; algum crescimento económico; criação de uma nova “classe política”; fortes transferências de recursos da “Europa rica” (CEE e UE); mas também elementos encantatórios como o crédito barato e disponível, e os aproveitamentos “facilitistas” de uma certa desregulamentação das nossas burocracias tradicionais, que o salazarismo havia ainda reforçado. Em todo o caso, não é preciso fazer inquéritos ou grandes estudos para ver como uma parte substancial das actuais elites nacionais – no Estado, nos negócios, na ciência e tecnologia, no espectáculo, nas artes, etc. – é hoje oriunda quase directamente das classes populares do campo ou da cidade: basta reparar nos apelidos citados na comunicação social.  

Escutei há tempos uma conferência pronunciada por inteligente e competente especialista na matéria anunciada, que se inseria na esfera da circulação económica, considerada em termos mundiais contemporâneos. O conferencista debitou durante uma hora inúmeros dados, apoiados em projecções de gráficos, esquemas, estatísticas e imagens, adequadamente articulados com o seu discurso, fluente, preciso e sugestivo, com alguns inglesismos à mistura como agora é inevitável. Toda a audiência (de iniciados na matéria) apreciou verdadeiramente a sessão e o caloroso aplauso final nada teve de ritual formalista, antes exprimia a satisfação efectiva com o que tínhamos ali aprendido.
Porém, a própria continuidade e coerência interna do discurso – neste caso, relativo às tendências em curso no tocante à movimentação de mercadorias no espaço-mundo, considerando os seus locais de produção, transporte e logística, em direcção aos grandes centros de consumo, mas também atendendo às condições tecnológicas de circulação da informação implicada por tais fluxos, regras jurídicas mobilizadas e constrangimentos administrativos irrenunciáveis (fiscais, de segurança, etc.) – dizíamos que foi a própria qualidade intrínseca do seu discurso que nos suscitou o desafio de observar (“em cima da onda”) e tentar desmontar e pôr em evidência alguns dos implícitos ali contidos. Ao “naturalizá-los” no (des)envolvimento de uma lógica discursiva avassaladora, a sua eventual discussão e crítica pode ter ficado prejudicada. É isso que pretendemos agora sinalizar, de maneira muito simples ou mesmo elementar.
Recorrendo exclusivamente à memória oral deixada por esta audição (naturalmente, muito falível), fixamo-nos apenas em dois ou três pontos susceptíveis de exploração crítica explicitadora de alguns “não ditos”, o primeiro dos quais é o recurso frequente (neste tipo de apresentações) ao uso de termos de linguagem técnica em inglês (ou melhor, “americano”) sem que, ao menos, uma observação de ressalva seja feita, ou procurando-se o conceito mais aproximado que lhe equivalesse em língua portuguesa. Esta “universalização” da terminologia técnica (fixada na língua inglesa) é um fenómeno comunicacional social desta nossa época, imparável, e com numerosos efeitos benéficos. Mas não deveria servir para o empobrecimento e definhamento de cada uma das línguas maternas. Sempre que possível, a sua tradução seria muito desejável e arriscamos dizer que constituiria mesmo um “acto de cultura”. No caso vertente, as terminologias técnicas dos meios de transporte usados, das actividades logísticas e das operações económico-financeiras referidas têm, todas elas, traduções linguísticas razoáveis (ou mesmo ricas e importantes, algumas mesmo com antiguidade) no idioma português. A sua não utilização, a benefício do jargão anglófono, pode ser vista como o desperdício de uma oportunidade. Por economia de espaço (e escassez de capacidade memorial), não exemplifico aqui com algumas palavras este tipo de comportamento humano, hoje tão recorrente em diversas áreas de especialidade, supondo que todos os leitores terão perfeita consciência da existência deste fenómeno. Noutros casos, concedo facilmente que não exista equivalente terminológico na língua de Camões (que não conheceu a electricidade nem os computadores). Mas, sabendo-se como a língua é uma codificação significante, viva e sempre em evolução, deveriam talvez aqueles especialistas fazer o esforço de facilitar a criação de novos “anglicismos”, ousando experimentar adaptações lógicas do termo original britânico (como fizemos com “computador”, para computer), ou mesmo, com aquela criatividade de que dão mostras os publicitários, encontrando judiciosos termos equivalentes que já existam no nosso idioma. Imaginemos: “comportamentos auto-obrigados” em vez de comportamentos “aditivos” para adictive behaviour.    
Em segundo lugar e como venho acentuando, observo que o funcionamento da economia se vem constituindo como o principal meio de acção (e mesmo de representação simbólica) das sociedades modernas. Longe, longíssimo, estão os tempos em que, na família, na freguesia, no trabalho, no estudo ou no lazer, os assuntos que ocupavam a conversação entre as pessoas saltitavam alegremente entre as dinâmicas das interacções individuais (descrevendo-as, caracterizando-as, estigmatizando-as, etc.), os comentários sobre a “ordem política” interna ou externa (de louvor, abespinhamento, temor ou desprezo), as relações dos humanos com a natureza (a doença, a morte, as intempéries, a expectativa de novas primaveras, etc.) e os insondáveis desígnios da vontade divina face aos pequenos imponderáveis do quotidiano, às iniquidades da distribuição da riqueza e da justiça dos homens ou à salvação definitiva das nossas almas. Hoje, fala-se de economia para relatar a concorrência entre estados-nação que antigamente se descreviam em termos de apetites imperiais ou do direito dos povos a disporem do seu próprio destino, que lhes era muitas vezes denegado. Fala-se de economia quando se discutem medidas de política social para socorrer os mais necessitados ou assegurar uma equitativa oferta na prestação dos cuidados de saúde a uma população. Fala-se de economia (alocação de recursos, custos e quem os deve suportar, etc.) quando se põe em causa a lógica de um sistema educativo em relação com a futura divisão-do-trabalho que ele vai fortemente condicionar. Apenas um exemplo concreto da actual prevalência da razão económico-financeira sobre outras considerações de natureza mais social: compreende-se a pressão da CEE para quebrar o monopólio das antigas companhias ferroviárias nacionais e para estimular alguma concorrência entre “operadores”, a benefício dos utentes. Por isso se fez a cisão entre a CP e a Refer (infraestruturas), além de outras. Mas agora foi esta última fundida com a Estradas de Portugal (constituindo a Infraestruturas de Portugal) quando se tratava de duas organizações com culturas-de-empresa inteiramente distintas, e apenas porque a Refer acumulava prejuízos e dívida, e a segunda arrecadava bons proveitos, obtendo-se assim uma única entidade com as contas equilibradas face a Bruxelas e aos credores. Nas políticas governamentais, observa-se algo de parecido: com Passos e Gaspar, a palavra-de-ordem era “corta!”; agora com Costa e Centeno o guião da comunicação política é mais elaborado: “anuncia!”; “mostra as diferenças com o passado recente!”; “festeja!”; “atrasa!”; e “adia!” – tudo por causa do maldito cifrão. Finalmente, quando se tenta reflectir sobre o devir da humanidade para as próximas décadas, é ainda e sobretudo em termos de projecções da evolução dos principais parâmetros socioeconómicos que todos somos levados a raciocinar, ainda que em tais cenários se possam considerar também factores demográficos, de aproveitamento da energia e outros recursos-chave, de degradação do meio natural ou de hipotéticos cenários nas relações internacionais.
Em certa medida, até o discurso ritual-espiritual da Igreja Católica se deixa corromper por esta envolvente populista, espectacular e atenta ao lucro financeiro. Pois não é que se houve dizer que, neste ano jubilar do centenário das aparições de Fátima, terão lugar vários “eventos” complementares, como serão umas cantorias populares por um qualquer Marco Paulo ou um congresso internacional de turismo onde não é crível que se trate da santificação das almas?! Bem pode o Papa Francisco continuar a pregar e dar bons exemplos, que tem atrás de si uma “máquina” imparável e muitos lóbis e interesses a atravessarem-se-lhe no caminho! Porém, é interessante ver um teólogo e hierarca da Igreja como Carlos Azevedo vir reconhecer publicamente que não houve “aparição” alguma aos três pastorinhos de Fátima, mas apenas “visões místicas”. Por muito menos se queimaram e perseguiram apóstatas e hereges no passado.
A linha de pensamento tecnocrático tende a considerar como contínua e ininterrupta (embora oscilante) a curva do crescimento económico, embora conheça da teoria como essa linha foi, no passado, afectada por perturbações de grandezas e sentidos diversos. Crises económico-financeiras brutais (como a que despovoou a Irlanda em poucas décadas no século XIX ou assolou o mundo ocidental no pós-Grande Guerra); conflitos armados de grandes proporções (como a guerra civil norte-americana ou as duas Guerras Mundiais do século passado); “revoluções culturais” surpreendentes como foi o Maio de 68; magnos acidentes geológicos (como o terramoto de Lisboa de 1755) ou cósmicos (com o impacto sempre possível de algum meteorito); ou mesmo flagelos epidémicos incontroláveis (já não temos memória da “peste negra” mas não ficámos imunes a fenómenos deste tipo, como a “gripe das aves”) – tudo isto são ameaças possíveis a um mundo que acumulou um stock fantástico de bens materiais e de conhecimentos operativos, que durante um tempo afivelou uma máscara de optimismo e nonchalance mas que, de repente, se viu agora confrontado com as suas próprias contradições e por algumas delas ameaçado, a que se somou a insegurança do terrorismo, a desconfiança no outro e a descrença nas possibilidades de melhoria colectiva. A sociedade de risco foi uma caracterização feliz do sociólogo alemão Ulrich Beck para os medos, as ameaças e os movimentos inorgânicos e emocionais dos nossos dias. 

Aqui há meses, o livro Eu e os Políticos de José António Saraiva suscitou um êxito editorial pouco comum e comentários indignados de alguns dos nossos mais reputados comentadores. É certo que o estilo “lavagem de roupa suja” estava anunciado e que a qualidade de jornalista – ou melhor, de director de imprensa escrita – deveria impedir o autor de publicitar frases e atitudes recolhidas off record. Esclareço desde já que não li o livro e não tenciono fazê-lo, porque julgo nada ter a apreender com tais revelações. Apenas escutei parte de uma entrevista dada por Saraiva a um canal de televisão, onde aliás me pareceu pouco convincente e à-vontade a “falar para as massas”. Também não me custa a crer que a sua personalidade seja altamente auto-referenciada (se é verdade o que se diz de o homem se considerar um romancista de enorme craveira…) e, por isso, menos interessante. Mas, enquanto observador privilegiado da vida política portuguesa dos últimos 40 anos (sobretudo pelo que assistiu em privado e lhe contaram actores determinantes desses processos), é possível que daqui por meio-século estas “inconfidências” possam constituir uns complementos bastante esclarecedores sobre o referido período da nossa história, o que poderia ajudar ao perdão dos pecadilhos actuais. Jornalismo ilícito? É provável. Mas talvez o testemunho deixado venha a justificá-lo. Em todo o caso, eis um profissional da imprensa bem contrastante com o perfil de um José Manuel Paquete de Oliveira, o “sociólogo afável” que o Público elegeu entre as principais figuras nacionais que nos deixaram no ano de 2016, ou a escritora-reporter globetrotter deste mesmo jornal chamada Alexandra Lucas Coelho, de cujas posições políticas e sociais geralmente discordo mas a quem reconheço uma elegância e desenvoltura de escrita irrepreensíveis e julgo ser mulher de coragem a toda a prova (ver o seu interessante “Último texto” no Público de 27.Mar.2017 e o elogio de João Miguel Tavares na edição do dia seguinte do mesmo jornal). Todos bem diferentes ainda do pivot do telejornal da “2” João Fernando Ramos que, geralmente discreto, não se coibia contudo de anunciar a série dinamarquesa Fraude acrescentando que “tinha muitos pontos de contacto com a nossa realidade”, no que estava excedendo a sua função: sobre a interpretação e as intencionalidades da ficção, responde unicamente o público, a crítica e o próprio autor; dispensa-se a “promoção” do jornalista.
E uma palavra ainda para dois “mestres da comunicação”. Por coincidência, na mesma edição do jornal Público (de 24.Dez.2016), José Pacheco Pereira e Jorge Almeida Fernandes assinaram artigos sobre política internacional de grande qualidade e oportunidade. Se do último já é habitual lermos análises muito bem informadas, prudentes e que nos fazem reflectir, de JPP há muito que já não suportávamos escutar as suas palavras, pela “roda-livre” discursiva a que se entrega e pelos “ódios de estimação” que manifestavam. Desta vez, porém, falando da “Doutrina Trump-Putin”, Pacheco antecipa com lucidez as prováveis mudanças que aí vêm no xadrez internacional. Se a isso juntarmos os riscos que se percebem existir no sistema económico (matéria que ele ignora), há de facto fortes razões para estarmos preocupados. Quanto ao acutilante texto de JAF (“Nas mãos da Alemanha e de Angela Merkel”), só me apetece lembrar todos aqueles que, até há dois anos atrás, invectivavam quotidianamente a chanceler alemã e assestavam as suas baterias alarmistas sobre o novo “perigo germânico”, apostado em dominar na Europa para poder impor-se no mundo! Emudeceram? (perante a política “do milhão de refugiados”, a estabilidade da coligação CDU-SPD, o relativo apagamento do sr. Schäuble, as dificuldades financeiras da Volkswagen e do Deutsch Banke ou o atentado natalício de Berlim?)
Apesar das travagens proteccionistas que se ensaiam actualmente, o mundo não deixará de funcionar como um todo, numa ordem algo desordenada que nenhum poder verdadeiramente controla. A tecnologia já não consente grandes recuos. E talvez a vontade dos Homens seja capaz de o aproveitar para melhor preservar o seu destino.   

JF / 22.Abr.2017   (dois dias depois de uma sessão extraordinária, de sonho e vibrações, ocorrida no auditório B103 do edifício II do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa)

terça-feira, 11 de abril de 2017

Algumas noções básicas a relembrar

Os animais têm um pequeno psiquismo. De alguns, com a massa encefálica mais desenvolvida, pode mesmo dizer-se que são inteligentes. Só não têm é capacidade reflexiva – no fundo, a enorme diferença que os separa dos humanos.

A sexualidade é uma das características fundamentais dos animais de constituição já complexa – como os mamíferos e outros – e, naturalmente, também do Homem. A atracção sexual existe para tornar aliciante (e por vezes mesmo irresistível) a procriação de novos seres da mesma espécie através da cópula entre macho e fêmea. Neste sentido, toda a exploração do prazer sexual fora destas condições (masturbação, homossexualidade, etc.) é objectivamente “não-natural”. Encontram-se múltiplos exemplos destes na natureza, mas como desvios aos padrões de comportamento estatisticamente (e funcionalmente) normais. São gestos animais incontrolados (que certos bichos também praticam); ou então acto de cultura (em sentido socio-antropológico), isto é, pura invenção humana. Este factor é muito (imensamente) atendível, mas não deve apagar tudo o resto.

A exploração lúdica da sensualidade é tão antiga como a nossa história. A sua valorização social é que tem variado imenso ao longo dos tempos. É que estas pulsões da natureza orientadas pela vontade entram em confronto ou combinação com outras características das sociabilidades dos colectivos humanos: por exemplo, é muito conhecido que a homossexualidade e a pedofilia foram aceites sem esforço entre as classes altas na antiga civilização grega; e que as orgias e bacanais eram um divertimento lícito entre os patrícios romanos (mas não sabemos tão bem o que se passaria entre os servos e os escravos). Até ao século XIX (em que viveram os avós de alguns de nós, de quem recordamos ainda o timbre do seu falar), admitia-se a existência dos eunucos nas cortes dos sultões otomanos ou dos imperadores chineses; e no século anterior as elites aristocráticas europeias deliciavam-se com a bela voz dos castrati, uma das mais maquiavélicas invenções do espírito humano.

Mas a sociocultura ocidental, marcada pelo judeo-cristianismo, veio progressivamente a esconjurar a libertinagem e a impor normas de conduta muito estritas de acordo com essas doutrinas religiosas. A família monogâmica ficou obrigatória e o catolicismo tentou reprimir toda a manifestação de sexualidade que excedesse o intuito procriativo. A vida moderna refreou estes intentos e a ciência, com Freud em primeiro lugar (mas também os antropólogos das sociedades primitivas e os historiadores), ajudou-nos a compreender um pouco melhor os tabus, os interditos, as liberalidades e os diferentes arranjos familiares que têm existido em tempos e locais distintos. Actualmente, nos países mais ricos e tolerantes (que dominam a comunicação e o comércio mundiais), desenvolvem-se fortes dinâmicas e mesmo políticas incentivadoras do direito-ao-prazer e da liberdade sexual, procurando contudo preservar a saúde pública e prevenir a procriação não-desejada. É uma tendência de época que pode vir a ser travada ou revertida, tal qual aconteceu já no passado. Mas por razões religiosas ou outras, o celibato, o ascetismo e a abdicação de quaisquer prazeres carnais também foram (e são) praticados por muitos (pense-se em budistas e na espiritualidade de certos santos), que são capazes de adoptar uma autodisciplina que provavelmente recusariam se lhes fosse imposta. Misticismo e sexualidade são áreas onde se espraiam os relativismos culturais. Tal como o são as normas sociais (impostas pelo direito costumeiro ou pelas leis de um Estado), que tanto podem considerar aceitável que a mulher esquimó largue o seu nascituro na banquisa porque a comunidade não consegue sustentar um incremento populacional, como condenar por homicídio quem, apiedado pelo sofrimento atroz de um ente querido, decide abreviar-lhe a vida. Temos (e devemos) lidar com a realidade que nos rodeia e impõe constrangimentos – ao mesmo tempo que nos permite usufruir de inúmeros bens e vantagens –, mas nada impede que a tentemos modificar e melhorar segundo o que a nossa racionalidade ou convicção nos recomenda.

Como em outras espécies animais, os humanos são fundamentalmente iguais, mas também diversos entre si, individualmente e colectivamente. A individualidade é sempre reconhecível (e “etiquetada” com o nome próprio que dão a cada um de nós), mas a sociedade envolvente e a época histórica permitem uma sua melhor ou pior afirmação e expressão pública. Quanto às diversidades colectivas, as mais evidentes são as de género, raciais – ou melhor, étnicas, desde que a palavra raça ficou interdita por mau uso de “racistas” e por pruridos “politicamente correctos” – e das diversas fases do desenvolvimento biológico da pessoa. Mas, em seguida, há muitas outras, que agora costumamos designar por identidades (colectivas): podem ser linguísticas, nacionais, regionalistas, tribais, profissionais, por via de integração em crenças religiosas ou partidos políticos, etc. Entre todas, a família (qualquer que seja a sua morfologia) é a que mais profunda e duradouramente integra as individualidades que a compõem. Daí talvez o facto de, além dos laços de afectividade e amor, aí se gerarem também, por vezes, agressividades e sentimentos de ódio de grande intensidade.

No capítulo da constituição familiar, muitas combinações e modalidades existiram e existem ainda. Nenhuma impediu a ocorrência, mais ou menos ocasional, de cenas e processos de violência interna sobre as pessoas mais frágeis. Mas, essencialmente, além de assegurar a criação dos filhos pequenos, todas procuraram regularizar e sustentar a relação amorosa, uma afectividade prolongada oferecendo segurança e previsibilidade, e disciplinando os meros instintos e apetites naturais. Do que os cientistas puderam já apurar, é possível que a chamada “família nuclear” seja aquela que melhores condições psicológicas e afectivas possa oferecer ao desenvolvimento das crianças. Em todo o caso, o princípio jurídico do “superior interesse da criança” representa, esse sim, um notabilíssimo progresso civilizacional, infelizmente ainda pouco efectivado nas práticas sociais, sejam tradicionais ou contemporâneas. 

Reconhecer na Vida humana (além de um fenómeno de intrigante origem e complexidade) um valor moral inestimável, é algo que várias religiões referiram, que todos devemos à Civilização e que as leis dos Homens reconheceram ao criminalizar o homicídio e prever excepções como o princípio da legítima defesa. Por isso se deve avançar com extrema cautela no tocante à codificação jurídica de “novos direitos” nesta área, como a inseminação artificial, a interrupção voluntária da gravidez (principal fardo que impende sobre a mulher) ou a despenalização da ajuda a morrer para alivar a dor insuportável e insanável de um ente querido, quando este quer e não o pode fazer: dir-se-á que “sim”, mas com grande precaução – e desconfiança quanto à intervenção dos actores políticos (indispensáveis, mas quase sempre com uma “agenda escondida”), do profissionalismo, do juridicismo e da burocracia.        

Reconhecer cada uma destas especificidades na vida em sociedade, exige estudo, ponderação e saber. Para o Homem moderno, este deveria ser um programa de vida, a par de outros. Mas para quem tem o poder de impor ou a obrigação de exemplificar (em contexto educativo ou em termos de comportamento pessoal), torna-se mesmo um imperativo.  


JF / 11.Abr.2017

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