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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O período 1974-1986: doze anos decisivos que forjaram o mundo actual

Segundo alguns, nos anos de 1974 a 1986 ocorreram mudanças que passaram na altura como a factualidade do dia-a-dia que os noticiários nos trazem mas que, à distância, se podem considerar que foram decisivas para construir o mundo que actualmente existe, com todas as suas espectacularidades, dificuldades e interrogações.
Em 1974, a mudança de regime em Portugal deu algumas dores de cabeça aos governantes de Washington. A “utopia” dos militares revolucionários – pensando aplicar em Portugal o que tinham aprendido em  África, como sublinhou Eduardo Lourenço – acabou por ser de curta duração, embora tivesse deixado vestígios numa extrema-esquerda aguerrida mas muito dividida ideologicamente. Em breve, porém, os líderes ocidentais puderam ficar apaziguados com o rumo democrático aqui seguido a partir de 1976. É que se estava em plena “guerra fria”, com quedas e mudanças súbitas de sinal contrário, cujo equilíbrio final estava longe de ser perceptível. Em 1973, os militares haviam tomado o poder no Chile e Pinochet inaugurava uma ditadura sangrenta que duraria décadas, enquanto os israelitas ganhavam mais uma guerra aos países árabes (a chamada do Ion Kipur) sem que os golpes terroristas dos grupos palestinianos abrandassem (bombismo, desvio de aviões, reféns, etc.). Ainda em 1974, os coronéis gregos devolvem a governação aos partidos, mas em 74-75 são as colónias portuguesas de África tornadas países independentes que se inclinam notoriamente para o lado do Bloco de Leste e Cuba mete tropas em Angola e na Etiópia, onde o velho imperador Hailé Selassié fora deposto. São anos maus para os Estados Unidos, com a forçada demissão do presidente Nixon, a queda militar de Saigão e do Vietnam do Sul perante o Norte (pró-“soviéticos”), e o triunfo dos khmers vermelhos (pró-chineses) no Cambodja. Contraditoriamente, este avanço geoestratégico do Bloco de Leste só foi contido em Timor-Leste por uma invasão militar indonésia (que aí realizou uma ocupação opressiva e prolongada). E na América Latina eram regimes militares que se auto-justificavam fazendo frente às ameaças guerrilheiras esquerdistas (rurais ou urbanas), como no Brasil, no Uruguai (73) ou em 1976 na Argentina; mas três anos mais tarde os combatentes sandinistas tomam o poder na Nicarágua. Entretanto, a Europa mostrava ser uma zona relativamente neutralizada, com algum apaziguamento Leste-Oeste (selado pela Acta Final de Helsínquia em 1975) e uma transição da ditadura espanhola para um regime democrático sem mais derramamentos de sangue. Apesar disto, mantinham-se instalados em tais regimes pluralistas forças partidárias e sindicais fortemente alinhadas com Moscovo e existiam franjas extremistas (sobretudo à esquerda) que não hesitavam no recurso a formas de oposição armada (em Espanha, na Irlanda, Itália, Alemanha, França e até em Portugal).
No plano da economia mundial, observavam-se os efeitos de uma subida acentuada dos preços do petróleo, impulsionada pelo cartel da OPEP e que começaram a proporcionar grandes recursos financeiros aos países produtores do Médio-Oriente, ao mesmo tempo que as economias dos países industrializados ocidentais entravam num período de fraco crescimento e de aceleração dos preços dos produtos (estagflação), crise essa que fez aumentar os níveis do desemprego, já de si pressionados pelos progressos tecnológicos da automatização de certos processos de produção industrial, nos quais a Alemanha e o Japão (os vencidos de 1945) se distinguiam, beneficiando da dispensa de pesados gastos militares. E aqui vem entroncar a crucial alteração política ocorrida entre 1976 e 1978 na China, com o afastamento dos supostos radicais herdeiros de Mao Tse-Tung e a vinda ao poder dos comunistas pragmáticos liderados por Deng Xiao-Ping que estabelecem uma nova orientação da política económica do país, essencialmente concorrencial, exportadora e capitalista, mas sempre sob o controlo político monopolista do partido comunista.
Porém, não menos importante e significativa foi a atitude dos Estados Unidos perante essa reorientação, provavelmente ditada em primeira mão pela intenção de agudizar as relações entre Pequim e Moscovo (ideologicamente desavindos e que se confrontavam, por interposta pessoa, na península indochinesa) e de enfraquecer a capacidade deste último, um país-continente que desafiava os americanos, cara a cara, nos planos estratégico, militar e espacial. Com efeito, com a concordância dos ocidentais, já em 1971 a República Popular da China tomara o lugar de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU que até então fora ocupado pelo regime nacionalista da Formosa, sendo-lhe assim reconhecido o estatuto de grande potência (com armas nucleares desde 1967); no ano seguinte, o presidente Nixon fizera uma surpreendente visita a Pequim, normalizando-se as relações diplomáticas entre os dois países; e as trocas económicas com o Ocidente capitalista foram-se desenvolvendo, com algum papel particular da França mas sempre com a “luz verde” americana, culminando com o estabelecimento de um acordo comercial entre a China e a CEE em 1978, mais as negociações sobre o retorno à pátria chinesa dos enclaves de Hong-Kong e de Macau, sob o regime dito de “um país, dois sistemas”.
Nestes termos, ao findar da década de 1970, podemos considerar que os Estados Unidos continuavam a sustentar o seu poderio económico e geopolítico mundial forjado na II Guerra Mundial, liderando a coligação de países democráticos do Ocidente (e, em particular, a aliança da NATO), mas que perderam nesse decénio importantes posições para o Bloco adverso: geograficamente, no Sueste Asiático e em África; politicamente, ao ver consolidado um ligame de facto existente entre aquele Bloco e o movimento dos países não-alinhados do “3º Mundo”; eticamente, ao apoiar vários regimes ditatoriais na América Latina; e, no seu próprio campo, ao constatar a afirmação de uma tendência “neutralista” na Europa (com o “soberanismo” tradicional da França, a öst-politk  do chanceler alemão Willy Brandt, as rivalidades inter-nações e as liberalidades do seu pluralismo político). Por seu lado, o Bloco Socialista de Leste registava os correspondentes avanços geoestratégicos em África e Sueste Asiático, mantinha influências no Industão, na Europa e nos países árabes, mas continuava enfraquecido pela sua querela com os chineses e, sobretudo, pelas insuficiências do seu sistema económico, que suportava mal o nível das despesas militares e espaciais, bem como a ineficiência declarada do seu funcionamento burocrático: um exemplo disto é o acordo passado com os Estados Unidos em 1975 para o recebimento de 6 milhões de toneladas de cereais em troca de 10 milhões de toneladas de petróleo. O “Brejnevismo” estava a atingir os seus limites de desgaste pelo exercício do poder de Estado.
O biénio 1979-1980 constitui a abertura de uma nova fase na política internacional, no enquadramento anteriormente descrito. Por um lado, inicia-se a revolução islâmica no Irão que, de imediato, representa a primeira forma de afrontamento directo entre “o Islão” e os Estados Unidos, então qualificados de “grande Satã”, que ali perdem o importante apoio que tinham no regime do Xá, faustoso e opressor mas, até certo ponto, modernizador da sociedade. Por outro lado, os dirigentes da URSS lançam-se na aventura de sustentar um governo por si suscitado no Afeganistão, terra que sempre foi de salteadores e de rebeldias tribais e que entra numa guerra dura que só terminaria com Gorbatchev dez anos depois, retirando os seus homens.
Perante isto, imagina-se que os “cérebros estratégicos” norte-americanos tenham concluído que – ainda que com a China “neutralizada” – não podiam enfrentar simultaneamente dois adversários ao mesmo tempo: o Bloco de Leste e o “islamismo radical” (já enriquecido em surdina com petro-dólares, a despeito dos aliados ocidentais do mesmo credo religioso mas pouco seguros que eram a Turquia, o Egipto, a Arábia ou os países do Golfo). Assim, tal como os alemães nos dois grandes conflitos novecentistas tentaram ganhar rapidamente uma guerra a ocidente para depois enfrentar a outra a oriente, também os estrategas de Washington terão pensado elevar o seu grau de pressão competitiva sobre a URSS (embora sempre dentro da “política de desanuviamento”) respondendo à nova ameaça tecnológica dos SS-20 russos de maneira vigorosa com o seu programa dos “euromísseis” em 1979. Aqueles mísseis procuravam separar ainda mais os europeus dos americanos, reforçando a referida “neutralização” da Europa ocidental; estes últimos respondiam ofensivamente a tal ameaça, aproveitando o estado de exaustão do regime russo, as suas preocupações no Afeganistão e com o seu arco islâmico meridional, face ao levantamento irado dos povos do Médio Oriente. Talvez assim pressionado, Moscovo viesse a “lançar a toalha ao chão” – terá pensado Reagan em 1983 ao anunciar o programa da “guerra das estrelas” num momento de transição e indefinição da liderança política em Moscovo.
Os “Kremlinólogos” sempre exploraram os sinais e brechas entrevistas na aparente unidade da direcção política da URSS. Os anos de 1983-85 deram fartos pretextos para tais congeminações e decerto que a ascensão de Gorbatchev ao poder supremo não foi isenta de golpes, traições e denúncias. Mas o seu programa reformador de “transparência e reestruturação” mostra até que ponto a situação do país estava bloqueada: politicamente, economicamente e socialmente. Como reformador para salvar o sistema do afundamento, Gorbatchev chegou tarde demais. E encontrou pela frente dois líderes ocidentais conservadores “duros de roer”: a senhora Thatcher (1979-1990) que forjou a sua força política ao denunciar e desafiar internamente o poder social dos sindicatos e externamente os generais argentinos, ganhando a difícil guerra das Malvinas; e o medíocre actor Reagan (1980-1988), limitado político mas com “faro” para a percepção das relações-de-força internacionais e das oportunidades oferecidas pela conjuntura. O desabar do muro de Berlim e do Bloco de Leste (1989-1991) foi o acontecimento histórico mais relevante desde a II Guerra Mundial e a Descolonização.
Com o encorajamento dado à “globalização” da economia mundial e com a ajuda involuntária dos novos meios de telecomunicações de massas (televisão por satélite, etc.), aqueles governantes tiveram ainda um papel preponderante num progresso económico visível ao longo dos anos 80 e 90, ajudados no espaço europeu por líderes com personalidade própria como o Papa João Paulo II, o francês Mitterrand ou mesmo o alemão Kohl, e pela dinâmica do processo de “construção europeia”.
Por seu lado, a China (que anteriormente tentara competir com a URSS em África sem grande sucesso) preocupou-se nestes anos sobretudo em sedimentar o seu novo modelo económico e menos com a evolução das relações políticas internacionais, deixando espaço livre para o benefício experimentado pelos ocidentais com as liberalizações das trocas comerciais e a desregulação dos mercados financeiros – e o “velho continente” com as delícias do seu “modelo social europeu”.
Porém, já nos anos 70 o sociólogo Ralph Dahrendorf alertava para uma possível “revolta dos contribuintes” perante os elevadíssimos níveis de tributação que os governos social-democratas do norte da Europa estavam instituindo nos seus países, que prenunciavam um regresso quase inevitável de uma nova corrente de liberalismo económico, que veio a ser concretizada na década de 1980 com Tatcher e Reagan, a evolução dos acordos GATT para a OMC (Organização Mundial do Comércio) e o desenvolvimento das grandes empresas multinacionais, mais o início da “desformatação” interna das organizações produtivas, com a ajuda das automatizações tecnológicas e informáticas e a erosão do poder sindical.
Quanto ao “3º mundo” e ao movimento dos não-alinhados, foi-se desvanecendo o que restava da sua genuinidade inicial e da sua própria autonomia. Em África, reforçou-se a dependência da “fraternal ajuda” de Moscovo, com algum protagonismo próprio do castrismo cubano, ao mesmo tempo que o militantismo africano concentrava as suas lutas nos últimos redutos de resistência branca (na Rodésia, Namíbia e sobretudo na República da África do Sul); mas a pobreza acentuou-se para largas massas camponesas, as elites governantes reforçaram os seus poderes e houve países quase destruídos por guerras civis, tribalismos ou ditadores sanguinários – sem esquecer os progressos da islamização para sul, na costa oriental mas também na vertente atlântica. No Oriente, caiu o regime autoritário de Marcos nas Filipinas em 1886, mas manteve-se o de Suharto na Indonésia, enquanto o Vietnam impunha a sua influência na península indochinesa (embora ainda quase fechada ao exterior), a Índia conseguia conservar o epíteto da “maior democracia do globo” e se afirmavam economicamente “novos dragões”, países pequenos como Singapura, a Malásia, a Formosa ou a Coreia do Sul, mas com mão-de-obra barata e abundante que as multinacionais investidoras aproveitaram intensamente. E na América Latina os democratas ocidentais tiveram o ensejo de saudar a sucessiva queda de vários dos regimes de ditadura militar, como se verificou na Argentina e no Brasil.
Enquanto isto acontecia, no Médio-Oriente as coisas tornavam-se mais intrincadas e concentravam nesta área o principal foco de conflitualidade mundial. A contínua flagelação de Israel por parte de guerrilheiros palestinianos levou a diversas incursões das tropas judaicas em territórios vizinhos como o Líbano e Gaza (que pertencera ao Egipto) e a ocupações territoriais mais ou menos prolongadas. A Líbia de Kadafi continuou a ser um foco de agitação anti-ocidental e base de apoio de diversos extremismos políticos. E o Irão envolveu-se numa guerra prolongada com o Iraque, que então beneficiou de ajudas europeias e americanas, numa antecipação do que se percebe agora ser também um conflito de natureza religiosa (entre xiitas e sunitas). Mantiveram-se aliados do Ocidente os governos do Egipto, da Jordânia, dos ricos mini-estados do Golfo e a ultra-conservadora Arábia Saudita, com os americanos a forneceram armas aos guerrilheiros afegãos para combaterem os ocupantes russos. O regime laico da Síria namorava mais frequentemente com Moscovo e países como a Somália (dirigida com mão de ferro por Siad Barre), o Sudão, o Iémen ou mesmo o Paquistão mostraram sempre instabilidade ou abrigaram forças políticas radicais. Em resumo, persistiu a polarização da questão palestiniana, reforçou-se o sentimento popular anti-ocidental (mas com escasso proveito para a URSS), verificou-se instabilidade em largas zonas e abriram-se conflitos entre facções muçulmanas. Mas o canal de Suez voltou a funcionar e o petróleo da região continuou a ser um elemento de grande importância económica e política para o mundo industrializado ocidental. E, num parêntesis, relembre-se que em 1985 Portugal entrou definitivamente na rota das democracias europeias com a eleição de Mário Soares para Belém e a assinatura da entrada na CEE: do seu “africanismo” restava agora apenas a nostalgia do império e ideias diferentes quanto ao relacionamento com os PALOP.
O que se seguiu nas três décadas subsequentes a 1986 foi a consequência directa destes processos, que se consumaram nas rupturas e dinâmicas que produziram o nosso mundo actual: a implosão da URSS e do Bloco de Leste; a explosão do terrorismo jihadista islâmico, que desencadeou respostas de força dos Estados Unidos e do Ocidente que se mostraram desajustadas e contraproducentes; o fantástico desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação; a ascensão da China a actor determinante da economia mundial (concorrendo agora em todas as áreas: indústria, comércio, finança, espaço, TIC e outras tecnologias avançadas, etc.); os abalos político-religiosos no mundo árabe que repercutiram directamente sobre a Europa, questionando a sua identidade; e a actual crise que afecta de uma maneira particular a União Europeia, simultaneamente financeira e económica, de projecto próprio e de redefinição do seu posicionamento face ao mundo, onde subsiste uma Rússia com “vontade imperial” e onde novas potências regionais tentam afirmar-se (a Índia, a África do Sul ou o Brasil, que porém rapidamente “gripou”).
JF / 22.Nov. 2016 

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Lar de idosos

Virgílio Ferreira foi talvez o maior dos nossos escritores-intelectuais contemporâneos. Um dos seus últimos textos publicados, o romance Em Nome da Terra (1990), é uma obra que não se deve perder, embora possa ser dolorosa de ler e recitar para alguns. O protagonista, afectado já fisicamente e internado num lar, imagina-se escrevendo cartas à sua amada mulher, Mónica, antes desaparecida. Mas contém passagens irresistíveis, como esta que transcrevemos (págs. 255-258 da 5ª edição):

«São já horas de almoço, devia já haver hóspedes na tarefa. Mesas postas, o salão sem ninguém. E de subido reparo que na mesa do Firmino, é ao lado direito da porta, quem é? uma mulher de uns sessenta anos. Pergunto-lhe se me posso sentar. Ela diz-me tem aí tanta mesa. Mas eu digo-lhe que costumo sentar-me nesta quando aqui venho comer e ela então diz-me como quiser. E eu disse ainda
– É a mesa do Firmino, lembrei-me de vir hoje aqui.
E imediatamente começou a falar de si. Todas sois assim, Mónica, tu desculpa, minha querida. Dez minutos com uma pessoa desconhecida e imediatamente pondes tudo ao léu. Tantas vezes me aborreci contigo por disso – e entretanto veio outro tipo para a mesa e eu disse que vinha ver o Firmino.
– Morreu ontem – disse ele enquanto se ajeitava à mesa.
Tudo logo ao léu – e porquê? Deve ser uma forma de chamardes a atenção, de afirmardes a vossa importância, de vos integrardes numa sociedade que durante milénios vos excluiu. Deve ser uma falta congénita de pudor contra o pudor a que fostes obrigadas, o homem é infinitamente mais recatado porque nunca precisou – enquanto a mulher da mesa ia contando. Eu queria informar-me sobre a morte do Firmino, a mulher não dava uma aberta. Teria mais de sessenta anos, também o pudor já não era preciso. Forte, bem montada de peitos, ia contando da viuvez, o marido era empreiteiro, dos filhos que tinham emigrado, um deixara cá a mulher
– que é uma galdéria. E os filhos da minha filha meus netos são, os do meu filho ou serão ou não. Lá diz o ditado
– O Firmino morreu ontem – disse o homem num intervalo da conversa.
Comíamos os três em silêncio, a mulher explicou ainda, tinha a sua casa. Pequenina é certo, mas para que a queria eu maior? E então um dia disse cá com Deus e comigo
– Ernestina, vai para um lar. Tens lá quem trate de ti, vai para um lar, tens rendimentos para isso.
– Morreu ontem – disse o homem. – Foi hoje o enterro e muitos desses aí foram acompanhá-lo.
– E de que morreu?
– Eu não podia ir ao enterro, fui só à missa.
– Ainda pensei voltar a casar – disse a mulher. – Mas para quê? Há sempre homens, desde que se não tenha má boca. Tive um que estive quase. Mas aconteceu uma coisa engraçada
e aqui riu muito para haver graça no que dizia ser engraçado. É uma mulher estável, de encontros bem ajustados uns nos outros, um ar dominador do mundo e da moral. Porque a moral, minha querida, não está ao nível do mundo mas um pouco abaixo.
– Do coração – disse o homem – Deu-lhe a matar. A coisa agravou-se com uma questão dos dois sobrinhos. Foi o que me disseram.
– Não tinha filhos? – perguntei mais a confirmar.
– Foi uma coisa engraçada – disse a mulher. – Eu tive um cancro na mama esquerda e tiraram-ma. Então arranjei uma mama falsa, eles dizem, como é que dizem?
– Uma prótese.
– Uma prótese. Ora a mama esquerda é a que dá mais jeito a um homem para apalpar. Ele apalpava, apalpava e eu aí ri-me. Porque é que te ris? Perguntou-me. E então eu disse apalpa a outra, que essa mama é falsa. E ele aí não aguentou e largou a mama, largou tudo e foi-se embora até hoje.
– Não tinha filhos e os dois sobrinhos encarniçavam-se um contra outro e o Firmino ora estava mais com um ora estava mais com o outro para a divisão dos bens. Mas não se decidia por nenhum, tinha muito escrúpulo, e quando tinha tudo bem dividido havia sempre um que se queixava. Então ontem deu-lhe um ataque e ficou. E quem acabou por ficar melhor foi naturalmente o sacana.
– E então agora – disse a mulher – farto-me de gozar quando vou no metro ou assim. Porque sempre que há um aperto, há sempre um parvo que me apalpa a mama. Eu digo cá comigo aperta, aperta que é de serradura.
– Deve haver mamas mais parecidas com a natural – disse eu com delicadeza. – Feitas de borracha ou coisa parecida. Uma a que se dê ar como a um pneu.
– É capaz de haver – disse ela. – Mas está a ver eu agora a dar ar à mama e a medir a pressão?
E eu pensei coitado do Firmino. Estou a vê-lo às portas do paraíso e S. Pedro a perguntar-lhe se ele quer realmente o paraíso com a chatice das harpas e alaúdes ou se prefere o inferno com os heresiarcas e as putas. E ele a dizer – um momento que vou pensar.»

É de rir e de chorar! Mas é a realidade, ao natural!
        

JF / 5.Nov.2016

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