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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Voltar à luta anti-capitalista?

O Prof. Doutor João Caraça abriu o ano de 2014 com um artigo jornalístico intitulado «Em busca de uma Europa perdida» onde, relembrando alguns dos mais importantes momentos da vida política do continente no século XX, as reconfigurações da economia capitalista ao longo deste período, o esgotamento do Estado-providência criado pela esquerda, a implosão do bloco soviético e a crise europeia actual, termina afirmando: «Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje inescapavelmente mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito, procurar as alianças onde existem as solidariedades que vão cimentar o mundo novo» (Público, 2.Jan.2014).
É facto notório que nos últimos vinte anos se tem assistido no Ocidente a sucessivos apelos a um retorno ou renovação de uma conflitualidade sistémica e geral de intenção anti-capitalista. Numa primeira fase, sob a forma de oposição à hegemonia mundial do “império” americano e à suposta ideologia do triunfo definitivo dos seus valores (democrático-individualistas-competitivos) e do “fim da história”; e numa segunda fase, a partir de 2008, com o renascimento de uma velha tese com algum curso dentro das teorizações marxistas acerca da “crise geral do capitalismo”, o qual acabaria por sucumbir pelo descontrolo das suas contradições internas.
Este discurso tem sido veiculado não apenas por agentes políticos, mas também por inúmeros expoentes do mundo académico, ensaístas, criadores, cientistas políticos ou economistas. Mas não temos ideia de ter visto até agora expresso de forma tão clara o propósito enunciado por João Caraça de “transformar a crise em conflito”, para o que seria necessário “identificar o adversário real”.
Ora, aqui começa o problema.
Deixando de lado as referências conotativas dos termos utilizados, podemos com alguma facilidade reconhecer todos os malefícios que os críticos atribuem à economia actualmente dominante no mundo, com acumulação de riqueza (e de poder) em alguns círculos e a dependência económica (e no que se segue) do maior número, com processos de valorização contabilística que têm sido destrutivos de valores culturais e patrimónios naturais que seria mister preservar, e, por fim, com a sua fácil acomodação a realidades tão enraizadas na história como sejam os regimes de tirania, as guerras ou as religiões, procurando daí sempre tirar algum proveito material. Tudo isto é verdade e deveria permitir uma base de sereno consenso entre opiniões filosóficas e políticas bem diferenciadas.
Mas, até um passado recente, os responsáveis e os beneficiários essenciais dessa economia capitalista podiam ser identificados de forma relativamente fácil: eram os proprietários de terras úteis, os senhorios urbanos, os grandes comerciantes, os patrões das fábricas e os banqueiros, que transmitiam a riqueza amealhada aos seus descendentes; e eram, também decerto, os governos hereditários (ou já eleitos por colégios eleitorais relativamente restritos e controlados por caciques locais) que iam produzindo legislação que consagrava e beneficiava aquelas categorias privilegiadas da população, com o propósito da conservação da desigualdade social então reinante. Quando no século XIX a aristocracia cedeu a maior parte do seu poder social e político, pôde então dizer-se que o grande adversário da emancipação da maioria do povo (operários, camponeses, pequenos empregados e outros proletários) era a classe social da “burguesia”, desde então apontada como o inimigo-a-abater pela “luta de classes”.
O século XX, com as grandes guerras, a ONU, o fim dos impérios coloniais e o conflito Leste-Oeste alterou uma boa parte deste quadro. A luta anti-capitalista manteve-se latente como motivação política nos países mais desenvolvidos, mas contida pelo “pacto social” implícito nos Estados-de-direito-e-de-bem-estar, através do qual massas crescentes das classes trabalhadoras foram passando ao estatuto de “classes médias” com padrões de consumo e qualidade de vida nunca antes experimentados, aceleração da mobilidade social (via escolarização) e uma fruição cultural (televisão, espectáculos, turismo) funcional à legitimação de todo o sistema. É logo desde os anos 50/60 que estas modificações estruturais da morfologia e das dinâmicas sociais começam a ser apreendidas por observadores como Bell ou Goldthorpe: a figura dos “patrões”, dos “proprietários” ou dos “capitalistas” tornou-se desde então cada vez mais difusa e politicamente incerta ou ineficaz. 
Hoje teremos talvez um “capitalismo sem rosto” em que os movimentos (especulativos ou racionais, conforme o ponto de vista) dos “mercados” respondem a interesses financeiros onde provavelmente se misturam: - os apetites de “investidores”-sem-escrúpulos; - as estratégias de aplicação de fundos de grandes grupos económicos; - as decisões calculadas de profissionais que procuram sobretudo melhores remunerações para os capitais de milhões de aforradores que lhes confiaram as suas poupanças; - os representantes das finanças públicas nacionais que respondem antes de mais aos seus objectivos de conservação do poder e às expectativas dos seus eleitores; - e, talvez ainda, alguns agentes mais obscuros que realizam “jogos estratégicos” situados na cena internacional. Como identificar aqui, politicamente, um “adversário”, sem cair em noções vagas e perigosas como a de “plutocracia financeira”, impossível de usar depois da criminosa aventura anti-semita dos nazis alemães?
É certo que, nas suas intuições filosóficas, Marx concebeu o desenvolvimento da economia capitalista como podendo conduzir a um “capitalismo sem capitalistas”, em que uma fabulosa máquina de reprodução do capital funcionaria inteiramente subjugada às suas próprias leis, negadoras de qualquer laivo de sobrevivente humanidade. Estaremos nós hoje à beira de uma tal realização? E como passar da abstracção filosófica ao plano do conhecimento sociológico, antes mesmo de o querer passar ao da acção política?
Não é crível que assim seja. E parece-nos mais plausível que a actual “narrativa” da história dos Homens – nunca como hoje tão interdependentes e unidos por laços comunicacionais, económicos e mesmo comportamentais e culturais – seja dificilmente compreensível à luz de teorias e paradigmas teóricos forjados nos séculos XVIII e XIX. As questões económicas, demográficas, sócio-étnico-culturais, científico-tecnológicas, ambientais, comunicacionais e geo-estratégicas, cada qual com a sua razão própria, são agora inteiramente diferentes.
Cremos que João Caraça tem razão quando refere que uma das primeiras percepções que resultam de um projecto de pesquisa internacional em que está envolvido foi a de que «a democracia representativa entrou no vórtice da crise». Com efeito, não é de espantar que mecanismos jurídico-políticos imaginados há mais de duzentos anos em tão diferentes condições civilizacionais das que experimentamos nos dias de hoje se revelem agora incapazes de dar respostas satisfatórias aos problemas que enfrentamos.
Algo de semelhante se poderá dizer da cada vez mais insuficiente base de legitimação das identidades colectivas em termos nacionais. Apesar da irrecusável herança cultural que esse sentimento de pertença continua a ter num grande número de Estados – embora ainda não em todos –, vivemos actualmente uma realidade onde o découpage fronteiriço histórico deixou, em boa medida, de fazer sentido para um número crescente de pessoas. No entanto, o Estado é ainda, praticamente, a única entidade reconhecida na ordem jurídica internacional e há matérias (de segurança, memória histórica ou particularidade identitária) em que o auto-governo da nação deve ser respeitado. Mas vamos, por isso, recuar para o “soberanismo” (como desejam os nacionalistas de extrema-direita e alguma esquerda) quando tantos problemas são hoje já eminentemente supra-nacionais e só nessa escala podem ser resolvidos? Ou devemos antes forçar os nossos governantes a uma maior cooperação internacional e ajudarmos a inventar formas de participação popular mais alargadas?
A par da necessidade de controlo social sobre os processos de desenvolvimento económico e de uma regulação mais eficaz dos sistemas financeiros e do comércio mundial, qualquer configuração ideológica que possa ser construída em resposta à presente “consciência de crise” (que afecta essencialmente a Europa mas pode ter repercussões em todo o mundo) terá de incluir perspectivas políticas de consideração daqueles problemas – de uma maneira acessível para todos e operativa para os representantes e responsáveis.  

JF / 26.Fev.2014

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uma tese discutível (de "Sciences Po")

Tal como Pacheco Pereira, não quis pronunciar-me antes de ler o livro do ex-primeiro-ministro José Sócrates. 
A primeira impressão que retirei da sua leitura foi a de que estava perante um livro bem escrito, que mostra a inteligência e tenacidade do autor e a excelência formal da instituição escolar no quadro da qual foi pensado e produzido.
Mas, como qualquer outra tese de mérito, tem pontos que merecem ser discutidos e até contestados.
O primeiro é o do rumor (correndo sobretudo em certos meios políticos e universitários) de que se trataria de uma “grande tese”. Na realidade, hoje, uma tese de mestrado é uma dissertação de alcance e valor limitados, destinada a demonstrar o desembaraço e a capacidade do estudante que concluiu um primeiro ciclo de três ou quatro anos de escolaridade para realizar alguma investigação bibliográfica, manusear conceitos teóricos e saber estruturar devidamente um texto académico, e ainda de o saber defender oralmente perante alguém (um pequeno júri de professores) que sabe mais do que ele. No caso presente, a formação em engenharia (a dois tempo) do autor terá sido de efeito praticamente nulo, nem sequer pelos hábitos de socialização adquiridos por uma vivência em instituição universitária. Em contrapartida, temos a extraordinária experiência política desenvolvida e capitalizada ao longo de mais de uma década na governação do país e nos meandros da luta partidária, ao mais alto nível. Com a disponibilidade integral do seu tempo e a tranquilidade proporcionada pela distância à pátria, José Sócrates teve as condições ideais para a reflexão e a escrita. Com inteligência, não se meteu em temas relacionados directamente com a sua controversa governação nem em recriminações ou críticas aos seus sucessores. Preferiu um assunto que, abrindo todas as oportunidades para afirmar a sua visão política, lhe conferisse sobretudo um reconhecimento intelectual e académico.
Para uma personalidade deste calibre – mesmo de um país periférico como Portugal –, a instituição parisiense da Rue Saint Guillaume seria sempre suficientemente astuta e avisada para lhe acolher o projecto. E se desde a fundação (privada) e os tempos áureos de Jean Touchard ou René Rémond a ciência política foi o objecto central do seu estudo, nenhum obstáculo difícil de transpor impediria que uma reflexão de filosofia política pudesse ali ser desenvolvida, embora um pouco a contra-corrente das orientações predominantemente “positivistas”, quantitativas e comparativas da produção científica da casa.
Neste aspecto, com toda a sua argúcia mental, Sócrates assimilou o suficiente da cultura da instituição para elaborar um texto bem integrado nos cânones académicos, com bibliografia citada relativamente ampla, referências históricas e documentais precisas, e mesmo laivos de erudição, quando recorre a filósofos clássicos como Kant ou Voltaire. Não seria com a bagagem cultural da engenharia que alguém conseguiria fazê-lo! Mas, qualquer que tenha sido o teor da avaliação final que este trabalho mereceu aos professores de Sciences Po., não tenho dúvidas em afirmar (pelo que conheço dos seus hábitos) que ele deveria sempre ser classificado com uma “boa nota”, embora não, naturalmente, com os encómios que o ex-presidente do Brasil (e anteriormente líder sindical e do Partido dos Trabalhadores) Lula da Silva lhe dedica no prefácio da edição portuguesa, e os que decerto lhe foram conferidos pelos intervenientes na sessão de apresentação em Lisboa… – mas essa é matéria de luta política e de acção partidária, de que não desejo aqui ocupar-me.
Vamos então ao escrito!
Como se de uma discussão de dissertação universitária se tratasse, eu dividiria as minhas observações em três momentos: os aspectos formais do texto; as suas contribuições mais positivas para o avanço do debate e do conhecimento no espaço académico; e os pontos susceptíveis de crítica. 
Em primeiro lugar, detenhamo-nos inicialmente sobre o objecto de estudo seleccionado pelo estudante José Sócrates Pinto de Sousa em Paris. O título escolhido, provavelmente após “tacteamento” de vários outros temas possíveis, foi o de A Confiança no Mundo: sobre a tortura em democracia. Não sei até que ponto a questão da confiança se presta especialmente a ser abordada a propósito da prática da tortura nos regimes democráticos, já que ela deveria estar presente em muitos outros aspectos do funcionamento desses regimes, a começar pelos próprios mecanismos da representação política e da responsabilidade dos governos representativos, e, para além do sistema político, nos dispositivos jurídicos e de inter-relacionamento existentes no seio de uma sociedade complexa. Mas a questão da tortura no mundo, que tem sido proclamada como inaceitável em vários textos declarativos e tratados internacionais e faz mesmo objecto, desde 1984, de uma específica Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tem certamente relevância social e lugar adequado no campo da ciência política para merecer o seu tratamento numa tese académica.
Também a sistemática que organiza o texto corresponde inteiramente ao recomendado desde as primeiras aulas pelos docentes da casa, provavelmente ainda por habituação ou importação das faculdades de direito da vizinhança. Neste caso, temos três partes: a tortura, sob o ponto de vista proporcionado por uma abordagem histórica (onde, a uma rápida referência ao passado, se segue uma particular focagem à tortura aplicada por militares franceses na guerra da Argélia e outra às formas mais soft desenvolvidas pelos americanos durante a guerra fria); a tortura na perspectiva da moral, tratando principalmente das figuras do torturador e da vítima, do debate filo-filosófico (digo assim porque não sei o suficiente para o qualificar de filosófico) entre “deontologistas” (que se centram na observância rigorosa de um dado Bem; mais sobre os meios do que sobre os fins) e “consequencialistas” (que consideram os efeitos do acto ou da sua ausência; mais sobre os fins do que sobre os meios), além de um conjunto de questões de natureza utilitarista relativas à sua eficácia e à crítica dos defensores de uma sua utilização condicionada; e, por último, os efeitos da admissão de práticas de tortura sobre os regimes democráticos que, por excepção, os toleram.
Quanto à bibliografia que é usada e discutida na tese, além de suficiente, ela é muito internacional (o que agradaria às gerações mais modernas dos intelectuais de França) e quase toda de publicação extremamente recente: das 84 obras referidas, 60 são posteriores ao ano 2000 – o que mostra que o tema está “na berra” em certas esferas académicas e não foi propriamente uma “descoberta” do lusitano. Mas é bom registar que nos livros editados em França, à parte as obras de referência, que são da responsabilidade de editoras consagradas (Gallimard, PUF, Seuil, Minuit, etc.), a maioria trazem a chancela de La Découverte, que tem uma linha editorial “à gauche” bem conhecida. Apenas me surpreendeu a ausência do clássico Surveiller et punir: Naissance de la prison, de Michel Foucault, que lhe poderia ter sido útil se o mestrando quisesse ter dado uma outra orientação ao seu estudo, ou talvez porque este autor já tenha saído de moda na cena parisiense. 
A linguagem utilizada é muito viva, precisa e mesmo entusiasmante, por momentos, para quem se deixar embalar pela verve discursiva do ex-primeiro-ministro. Mas sujeita ao crivo crítico que adiante se verá. E a revisão do texto não foi perfeita: há gralhas, traduções deficientes (quadrillage por recenseamento), algum autor significativo referido no texto (por indicação de terceiros) não incluído na bibliografia – coisas menores.
No segundo ponto a considerar, desejo evidenciar aqueles que me parecem ser os contributos mais importantes deste trabalho.
Antes de mais, enfatizo o óbvio: sendo a tortura (e, em especial, a “tortura de Estado”) uma prática absolutamente nefasta, o autor coloca esta sua tese ao serviço da condenação do seu uso por parte dos regimes democráticos (já que nos regimes ditatoriais ela lhe parece mais coerentemente inserida num conjunto de disposições, todas elas insuportáveis para um espírito contemporâneo).
O reconhecimento, várias vezes relembrado, de que em tempos históricos recentes as democracias recorreram ao uso da tortura (os ingleses na Irlanda, mas sobretudo os franceses na Argélia e os americanos no Vietnam, exportando depois as suas técnicas “suaves” para outras frentes do anti-comunismo) constitui uma mostra de coragem e de capacidade (auto-)crítica para um homem que é também um político de esquerda.
Depois, o autor assume claramente como sua posição pessoal o campo dos “deontologistas”, no confronto moral com os “consequencialistas”, o que também não deixa de ser leal para com o leitor e mais esclarecedor para um exame crítico da sua “démarche”.
Finalmente, tem algum interesse a rápida revisão feita de certos textos constitucionais em vigor sobre o modo de decretar o “estado de excepção” e a maneira como esboça, no final, pese embora a sua problemática efectivação, algumas orientações de checks-and-balances – nomeadamente: publicidade e controlo judicial; «processo especial urgente» (o que quererá isto dizer?) sempre que existam suspeitas contra pessoas; e acesso das «instituições sociais» (imprensa, etc.) a «instalações, pessoas e documentos associados às práticas administrativas de exceção» – para evitar derrapagens liberticidas, mais fáceis de ocorrer em tais circunstâncias.
Um meu terceiro ponto de comentário crítico ao texto de José Sócrates iniciar-se-ia pela metodologia argumentativa por ele usada ao longo do seu trabalho.O “Eu” (autor) evidencia-se desmesuradamente neste texto como arguente de uma lógica implacável, construindo como que uma obstinada “narrativa” (como ele parece gostar de apostrofar terceiros) que tem como alvo determinadas posições e argumentos e também determinados sujeitos políticos, aliás expressamente nomeados. Não é habitual a discussão científica assumir hoje tais contornos, ao menos no campo das ciências sociais, parecendo mais um argumentário jurídico ou uma controvérsia dos antigos cenáculos, argumento contra argumento, silogismo contra silogismo. O recurso a factos incontestáveis (ou evidências empíricas, da história ou da legislação) é apenas feito para apoiar ou catapultar a posição sustentada e nunca como “teste de prova” da verdade teórica enunciada. E porque estamos laborando num universo de conceitos filosóficos, embora sem termos qualificações para tal, não nos inibimos de afirmar que nos parece fazer o autor largo recurso a técnicas de argumentação sofistas. Para situar este termo (que um dicionário corrente dirá consistir no uso de premissas falsas com aparência de verdadeiras para chegar à conclusão desejada) recorro à Wikipedia, tão referida na saborosa troca epistolar entre o Comendador Marques de Correia e José Sócrates nas edições do Expresso de 2 e 9 de Novembro passado: «Os principais e mais conhecidos sofistas foram Protágoras de Abdera (c. 490-421 AC), […] Pródico que teria sido mestre de Sócrates […], embora tenham existido muitos outros dos quais conhecemos pouco mais do que os nomes. Protágoras foi um dos professores mais conhecidos e bem-sucedidos. Ele ensinou aos seus alunos as habilidades e os conhecimentos necessários para uma vida bem sucedida, especialmente na política, ao invés de filosofia […]».
Neste sentido, na segunda parte da tese, a escolha de centrar a sua análise moral exclusivamente no campo adversário (o dos “consequencialistas”) parece-me elucidativa. Já lhe louvei a clareza do seu posicionamento pessoal. Mas o procedimento tem outras consequências de natureza metodológica, ou mesmo epistemológica. Ao “assestar baterias” sobre os diversos autores (não tantos quanto isso e sobretudo agrupados numa mesma obra de referência bibliográfica: Levinson, 2004) e sucessivos problemas equacionados pelos defensores da tortura em casos excepcionais (o «cenário da bomba-relógio», a legítima defesa, a “teoria das mãos sujas”, etc.) e ao concluir pela fraqueza ou fragilidade dos argumentos em que se baseiam, o autor poupa-se de fazer um simétrico exame aos argumentos do campo “deontologista” em que ele próprio se insere. Eu sei que esta é também uma prática corrente em ciências sociais, geralmente derivada do custo, dificuldade ou impossibilidade de empregar idêntico esforço para também tentar provar o contrário da tese de queremos sustentar e só nessas circunstâncias a considerarmos válida. Mas, no caso em apreço, esta espécie de “contra-prova” nem era especialmente difícil: bastava sujeitar os argumentos e efeitos práticos das posições “deontologistas” ao mesmo tipo de questionamentos que foram desencadeados para o campo oposto.
Os desenvolvimentos feitos sobre a «metástase» ou a «perversão institucional» (em que, começando-se por um emprego limitado a casos especiais, se passa necessariamente para um alargamento “como mancha de óleo” que acaba por corromper instituições e sociedades) são afirmações com insuficiente prova factual. Os exemplos alinhados poderiam porventura ser neutralizados por um conjunto equivalente de factos em sentido contrário. De resto, o próprio Sócrates se descuida nisso ao reconhecer, referindo-se aos Estados Unidos, que «no final da Guerra Fria há, sem dúvida, um abrandamento na utilização da tortura», o que significaria que, cessada a necessidade, o “mal menor” teria sido interrompido. Porém, o autor assinala que aquele país manteve «a preocupação de proteger as técnicas de tortura lite, por forma a assegurar que estas técnicas permaneciam disponíveis e passíveis de serem utilizadas no futuro», o que veio a acontecer, sob forma política mais explícita, após o 11 de Setembro de 2001.
Na primeira parte do livro – dedicada à história recente da tortura em democracia – trata-se sobretudo do uso escondido destas práticas no quadro de situações de conflito bélico aberto ou latente. Este quadro careceria de uma outra abordagem, pois o autor limita-se aqui a historiar o processo de “massificação” e banalização da tortura pelos militares franceses na Argélia e o apuramento dos métodos de “tortura científica” dos americanos durante a Guerra Fria e no Vietnam, com um outro desenvolvimento (já no derradeiro capítulo) para a evolução verificada durante a «guerra contra o terror».
A guerra e a tortura são dois fenómenos (de escala muito diferente) negadores da humanidade, mas produto das suas crenças e interesses. Não obstante isto, depois das carnificinas mais recentes, um esforço tem sido feito pela comunidade internacional para reduzir e impedir tais práticas, o que deve certamente ser encorajado e prosseguido. Mas, do ponto de vista da compreensão histórica, é excessivamente sumária a explicação dada por José Sócrates para o reaparecimento da tortura contemporânea em Estados democráticos. E pouco correcta a confusão que estabelece entre tortura e execuções sumárias pelos militares em campanha. Aqui, o autor terá cedido ao ambiente parisiense dos debates intelectuais sobre os principais fantasmas da história de França. Interessante é, contudo, a rápida interpretação dada ao caso português da guerra colonial sobre o qual o autor refere que terá sido a «concentração das actividades de tortura na polícia política portuguesa, ao contrário do que sucedeu com o exército francês na Argélia, que impediu o contágio e a corrupção institucional do exército português, o que pode talvez explicar o seu papel na revolução democrática de 1974».
Mais unilaterais são as críticas cerradas (sobretudo na terceira parte do livro) feitas à actuação da administração Bush-filho com o pretexto da «guerra contra o terror», com orientações já contidas nas reservas com que Reagan acolhera a Convenção da ONU de 1984, mas sem uma palavra sobre as políticas de Obama (a não ser a sua revogação dos ‘torture memos’) quanto ao não cumprimento da sua promessa eleitoral de desmantelar a prisão de Guantánamo, quanto é certo que o autor incluiu referências empíricas ocorridas até ao Outono de 2012, isto é, cobrindo todo oprimeiro mandato deste simpático presidente norte-americano.
É problemática – em termos jurídico-políticos – a colocação da “linha vermelha” de defesa de democracia contra si própria no patamar do respeito pela «dignidade humana». Sendo com certeza um valor absolutamente fundamental no mundo moderno, para o qual concorreram tanto alguns contributos trazidos por diversas religiões como a (então) corajosa defesa da laicidade e dos princípios republicanos e libertários, é todavia um daqueles “fourre-tout” onde cabe quase tudo o que lá se lhe quiser meter.
Nenhuma observação crítica também se regista quanto à natureza assimétrica da violência e da chantagem terrorista, que aliás se filiam e se desenvolvem a partir das guerras revolucionárias do século XX (recuperando a experiência muito mais antiga das guerrilhas), em que todos os actores do conflito contornaram o direito-da-guerra laboriosamente posto de pé no dealbar desse mesmo século, uns por estratégia, outros por recurso. E ainda menos se encontra uma qualquer abordagem qualificativa quanto à prática da tortura por forças anti-ocidentais no quadro da Guerra Fria e das suas guerras de libertação nacional, sendo certo que aí se terá originado o uso das técnicas de “lavagem de cérebro”, a que de resto o autor faz referência quando situa a génese da “tortura limpa” dos americanos. Tem razão a Amnistia Internacional quando vem confrontar o presidente Obama quanto à manutenção de Gantánamo (ver o jornal Público de 22 p.p.), mas este caso também ilustra as dificuldades da compatibilização do direito com as práticas de guerra actuais.
Finalmente, uma última nota. Como “tortura de Estado”, estamos perante uma violência sobre o corpo e o espírito de indivíduos, a qual deveria ser alinhada com uma larga panóplia de instrumentos cruéis à disposição dos ocupantes do poder político nacional, que sempre dispõem da força; quase sempre da lei; e só às vezes da razão. A tortura (para massacrar a vítima, para confessar o que interessa às autoridades torturadoras ou para obter informações de que estas carecem) é decerto um dos mais horríveis desses instrumentos. Mas poderemos tratar dele sem fazer referência ao emprego da guerra entre povos e nações organizadas? Ou às técnicas policiais, judiciais e prisionais usadas para reprimir no plano interno as manifestações de oposição aos poderes constituídos que mobilam a maior parte da nossa história conhecida? Ou certas decorrências da “razão de Estado” como sejam as práticas de espionagem, hoje adocicadas sob o nome de “informações” ou “intelligence” mas sempre a coberto do segredo?
Porque não questiona os mecanismos do poder e do domínio, José Sócrates transpõe inteiramente a sua análise para o campo das políticas, isto é, em última análise, da luta política (esquerda contra direita, ou entre linhas de tendência no interior do campo do socialismo democrático e da social-democracia), onde o seu argumentativismo fascina e parece impor-se.   

JF / 31.Jan.2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

A propósito das reformas em curso: Porque no meio desta crise aflitiva os cortes nas bolsas de doutoramento são assunto de interesse público?

A redução brutal no financiamento das bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, já esperada (mas não a esta escala!), abalou a comunidade académica e deixou-a justamente apreensiva relativamente ao futuro.
Uma visão superficial tenderá a ver nesta reacção um comportamento corporativo justificado. Se houver muito alarido, é natural que as pessoas se queixem, repetirá certamente alguém do governo diante das câmaras da televisão, como o fizeram durante e após as enormes manifestações cívicas contra as medidas governativas que lhes foram impostas. Afinal, no meio de tanto desemprego criado por esta crise da dívida (ou a pretexto dela), que têm os bolseiros e os “pós-doutorados” a mais do que os restantes funcionários públicos, empresários falidos e trabalhadores portugueses despedidos? Não têm o “direito” a sofrer com os cortes, como os outros?
Porém, se esgravatarmos um pouco mais, vemos emergir uma velha cisão na sociedade portuguesa sobre o papel das Ciências, das Artes, das Humanidades e das Tecnologias na criação de riqueza e no progresso social, em suma, da sua importância para um país que, até há bem pouco tempo, se encontrava imerso em pobreza e atraso. Curiosamente, isto acontece curiosamente no dia em que dois futebolistas excecionais são glorificados como heróis da pátria.  
Um parêntese talvez (im)pertinente:
No século XIX, as nações orgulhavam-se dos seus cientistas, dos seus músicos e dos seus artistas como expoentes de civilização. Há dias, nas redes sociais, alguém em Espanha fez o reparo que aquele país se orgulhava dos seus clubes de futebol, que estão no topo da excelência performativa futebolística, mas que era indiferente ao facto de nenhuma das universidades espanholas se encontrarem entre as 200 melhores do mundo.
Na verdade, a cultura, a ciência e as artes não vistas como problema a não ser pelos seus profissionais e mais algumas “aves raras” que as usam por gratificação pessoal. Tendem a ser consideradas como despesa líquida no orçamento, apesar das medições econométricas realizadas correntemente para “os países mais ricos”, apesar destes países pensarem e medirem o retorno económico desse capital. O problema é tanto mais grave quando informa uma visão de/para Portugal que não partilhamos, governado por feitores profissionais de ricos e oligarcas, bem sustentados por um exército e força pública convenientemente guarnecidos, que lá acalmam a sua consciência com religiões de vário tipo e obras de caridade, distribuindo pelas paróquias tachos e benesses, sempre escassos, por via das suas igrejas-partido.
Neste caso, os cortes no financiamento destas bolsas são apenas mais um sintoma de inversão de um caminho que o país tardiamente começara a trilhar: o do investimento na educação, na ciência e nas artes, beneficiando do espaço económico e político em que se decidira integrar. Apresenta-se como mais um episódio do subfinanciamento do ensino superior e da investigação científica dos últimos anos. A par disso, e como pano de fundo, temos programas deprimentes de apoio social escolar que convidam os mais pobres cada vez mais à desistência do estudo. Outros cidadãos, com maior poder económico, são tentados a ir estudar para universidades estrangeiras bem cotadas nessa bolsa mundial da educação-negócio que são os rankings.
Estes sintomas claros ocorrem na altura em que o governo lidera um processo de reestruturação de um ensino superior em crise de crescimento. A este respeito, um artigo que saiu recentemente no Público* revela a excelência intelectual do debate público em Portugal protagonizado pela chamada "classe política" e pelos seus fazedores de opinião.  Ficámos cientes de que "o ensino superior existe sobretudo para dar formação de qualidade aos estudantes, incentivar a inovação e dar à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável."
No cenário que nos é oferecido antecipadamente, o seu autor propõe que repensemos a missão da Universidade sob esta fórmula cativante (permitam-me que use uma expressão tão cara à tecnocracia do anterior regime). E são opiniões fundadas nos resultados de um estudo encomendado que, segundo parece, vem corroborar em muitos aspectos os factos e as crenças de um jovem que conheço e que, por sinal, conduz uma empilhadora numa empresa industrial.
Eu acreditava (é um voto de fé) que a Universidade deveria ser um centro de criação/produção de conhecimento científico, artístico, humanístico e técnico e que, por isso mesmo, a sociedade a encarregava da missão de formar os seus cidadãos ao longo da vida, atribuindo-lhes a faculdade de atribuir títulos académicos. E que esses títulos acreditavam publicamente ao longo da vida as exigentes competências adquiridas na academia. Ora, essas competências têm sido postas em causa diretamente pelo governo (veja-se o caso recente dos professores mais jovens) e pelos empresários (por exemplo, na área da saúde privada parece que preferem contratar médicos e enfermeiros estrangeiros; na assistência social, usam raparigas brasileiras para cuidar de idosos; na área dos serviços financeiros, contratam informáticos "brasileiros", etc., etc.) numa saudável lógica convenientemente (des)regulada. Leio nos estatutos da minha universidade: a "Universidade de Évora (...) é um centro de criação, transmissão e difusão da cultura, da ciência e da tecnologia, que, através da articulação do estudo, da docência e da investigação, se integra na vida da sociedade".
Em lado nenhum se diz que cabe às universidades criar emprego. O bom senso diria que cabe à sociedade criar riqueza e ao poder político criar condições para que isso aconteça.   
Ora, de acordo com a opinião daquele deputado do partido que se diz social-democrata, parece que "urge desenvolver reformas [no ensino superior] que aumentem a qualidade, a competitividade e a eficácia do sistema" tendo em conta o tecido empresarial português QUE EXISTE.  É fácil perceber que, atendendo ao nível de sofisticação científica e técnica das competências que são exigidas pelos empregadores nas ofertas públicas de emprego que têm existido na região e no país, bem como ao nível das remunerações que são atribuídas, que o modelo virtuoso do triângulo “qualidade, a competitividade e a eficácia” será algo parecido com o antigo colégio do Padre Alcobia de Ferreira do Alentejo. Era uma venerável instituição em que os professores eram bastante flexíveis, e bem supria as carências de formação daquele município até à “engorda do Estado” realizada depois de 1974.
Sejamos claros: para que serve gastar rios de dinheiro a produzir mestres e licenciados, ainda por cima oriundos a maior parte oriundos da ralé, se depois "não sabem trabalhar" em "centros de atendimento telefónico", como caixas de hipermercado, guias turísticos, serventes de café e de hotelaria (um ofício em vias de extinção), centros de massagens, etc. por 500 euros / mês ? E para que serve aos nossos jovens investir na sua formação se os sinais que lhes dá o poder político não apontam para outros caminhos que não sejam esses... ou a emigração? E ainda por cima sem capacidade creditícia para recorrer ao generoso financiamento bancário para continuar a estudar?
Com a retórica adequada, com o bombardeamento insistente nos media, com as medidas governativas graduais adequadas, invocadas em nome de uma qualquer emergência nacional, estou convicto que lá chegaremos... No que respeita aos institutos instalados na província, basta descobrir as vocações das regiões (a do Alentejo era o trigo e a cortiça, não é verdade?) e promover o enquadramento adequado. E quem estiver mal nessa nova espécie de escola técnico-profissional do “ensino superior”, a ministrar " formação de qualidade aos estudantes", irá sair (por via da reforma ou da "mobilidade") ou adaptar-se certamente. Assim, depois de umas décadas a promover o "sucesso educativo" no ensino básico e secundário (e que já chegou à universidade!), os professores universitários irão promover a "formação de qualidade aos estudantes" (com a ciência e as artes caídas dos céus certamente, ou dos manuais ingleses vertidos na língua pátria, mais ou
menos adaptados e explicadinhos pela sua autoria lusa), incentivando a inovação (reduzida assim ao engenho dos curiosos e analfabetos funcionais e à retórica que os portugueses sempre souberam usar para construir a sua própria realidade mítica) e dando "à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável" (por via da redução das "despesas" com as reformas, por falta de sustentação económica, e com as gorduras do Estado que todos sabemos onde estão).
É o que se está a fazer. Voilá!

Paulo Guimarães
(16.Jan.2014)
*http://www.publico.pt/sociedade/noticia/ensino-superior-jovens-desconfiam-e-empresas-nao-acreditam-1619618?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+PublicoRSS+%28Publico.pt%29

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

É isto o povo português?

Depois do 25 de Abril, só três acontecimentos conseguiram elevar a um ponto significativo de emoção extensas camadas da população portuguesa: a independência de Timor-Leste, a morte de Amália Rodrigues e agora o desaparecimento de Eusébio.
Naturalmente, este foi um futebolista extraordinário no seu tempo, um rapaz simpático e um homem sempre humilde nas suas atitudes e comportamentos, que merece ser lembrado.
Mas (apesar de todo o peso oficialista-comunicativo dado ao evento), o que explica esta ultrapassagem de qualquer outra manifestação desportiva, política, cultural ou religiosa dos últimos tempos em Portugal?
Que ingredientes terão transformado esta figura humana no mito e símbolo nacional que agora se percebe ser?
A primeira interpretação possível é talvez a de uma nação à deriva que encontra uma oportunidade para assim exprimir o seu mal-estar.
Em segundo lugar, trata-se do fenómeno do futebol que, mais do que popular, se tornou num espaço inter-classista e inter-nacional de canalização de paixões, de constituição de comunidades-de-massa e de objectivação de um outro/adversário/inimigo que é necessário esconjurar. E, dentro deste fenómeno, o Benfica é provavelmente a mais típica e alargada destas “comunidades maciças” que temos em Portugal: desde os “vermelhos” (impossíveis de pronunciar)/encarnados, até à “catedral da luz” (num momento, “vale dos caídos” para os vizinhos espanhóis).
Eusébio também representa o bom africano português que, com a sorte pelo seu lado e a vontade firme de a aproveitar, não teve necessidade de pegar em armas nem de apostrofar a singular colonização que os lusitanos plantaram em África.
Finalmente, era homem (de carnes vigorosas, indomáveis) e do povo, com as qualidades que, com ou sem razão, as mais comuns representações sociais lhe atribuem: simplicidade, abnegação, bondade, homem-menino, que aceita ser orientado por outros mais sabedores ou experientes.
Disto, já há pouco. Talvez seja mesmo uma despedida, até que chegue outra coisa.

JF / 6.Jan.204

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um balanço do ano

A cimeira das Nações Unidas de Novembro último em Varsóvia sobre as alterações climáticas saldou-se por resultados pouco animadores. Como é frequente nestes ambientes diplomáticos, um compromisso de última hora impediu que os noticiários falassem em fracasso, mas nem as ONG’s lamentaram ter-se retirado antes do final nem os comentadores mais bem informados interpretaram o esforço como algo mais do que um adiamento para 2015 dos problemas mais difíceis. Grandes países como os Estados Unidos e a China continuam a ser os maiores emissores de gases nocivos para a atmosfera; outras potências em ascensão não querem ver travados os seus processos de industrialização mais ou menos “suja”; e apenas a Europa parece fazer aquela figura da velha senhora virtuosa de quem afinal todos conhecem o seu passado pouco recomendável. E, no entanto, os cataclismos naturais vão-se integrando cada vez mais na realidade do nosso quotidiano, muito para além daquilo a que exploração do tema pelo cinema de Wollywood nos habituou. O tsunami que varreu o oceano Índico ou o maremoto que provocou o acidente nuclear de Tukushima há poucos anos atrás foram originados por fenómenos geológicos que nada terão a ver com o clima. Mas o furação que inundou a cidade de New Orleans ou o tufão de incrível violência que agora se abateu sobre parte das Filipinas – para já não falar da tempestade que assolou ultimamente a Sardenha e daquelas que vêm fustigando os continentes europeu e americano fora das regiões tropicais, ou ainda dos “tornados de Verão” nas mesmas zonas –, são acontecimentos que parecem dar razão àqueles que ligam estes fenómenos climáticos extremos aos impactos de longo prazo provocados pela industrialização e pelas gigantescas concentrações urbanas de que a humanidade foi já a responsável, no último século-e-meio.
Algo de semelhante – positivo mas muito aquém do desejável – se poderá dizer sobre o acordo saído da conferência de Bali da Organização Mundial do Comércio, um lugar de encontro universal que é hoje de extraordinária importância para a situação económica e social dos povos do planeta e onde a confiança entre os actores, neste caso os governos nacionais, é ainda frágil e insuficiente. 
A transmissão de liderança na Igreja Católica teve foros de absoluto ineditismo. E o novo Papa Francisco tem porfiado em manter os pequenos passos que transmitem a sensação de que ele está bem consciente da dimensão gigantesca dos problemas que a sua congregação hoje enfrenta, interna e externamente. Quem cá estiver daqui a vinte ou trinta anos poderá apreciar se os católicos estarão então mais unidos ou desavindos entre si, decerto conforme o vigor e veracidade da sua fé, mas também certamente em função do modo como se tiverem posicionado perante as encruzilhadas do mundo contemporâneo. A crítica explícita feita pelo Papa ao “capitalismo sem alma” é tanto destinada a dar alento aos pobres e às vítimas da actual crise económica como a procurar alinhar a Igreja entre as forças sociais que podem influenciar uma próxima reorganização do mundo e, a esse título, constitui também um recado para dentro do seu próprio “rebanho” e alguns dos seus pastores.
E quem saberá explicar as razões da ausência do Dalai Lama nas cerimónias fúnebres de Nelson Mandela?
E como se vai construindo a identidade cultural internacional daquela já imensa minoria de jovens adultos que trabalham em países diferentes de onde nasceram e foram socializados, realizando agora, aqui ou acolá, actividades profissionais locais ou “abertas ao mundo” pela Internet? Não se trata de uma nova religião (por ausência de qualquer laivo de espiritualidade), mas é provável que, face às tradicionais culturas nacionais, se estejam gerando uma “ideologia da comunicabilidade” e forjando novas identidades comunitárias, com o que de bom e de mau isso possa significar.
Nos Estados Unidos da América, o segundo mandato do presidente Obama continua enredado nos meandros e armadilhas da política interna e nas cautelas defensivas face aos desafios a curto e médio prazo que lhe vêm do exterior. Embora se tenha dito que a paralisação da administração pública de Outubro tenha acabado com um efeito de boomerang, não é certo que a radicalização do “tea party” no campo republicano esteja prestes a perder fôlego e não possa relança-se oportunamente num novo lance arriscado da confrontação entre Obama e os seus opositores. Na emblemática reforma dos seguros obrigatórios de saúde para os deserdados da economia e do muito competitivo sistema social americano o presidente já teve que conceder vários ajustamentos aos seus adversários, que não querem acrescentar novos encargos à despesa pública e que se recusam a reconhecer que a população já não é apenas a descendente dos “velhos colonos” nem das comunidades europeias fugidas da opressão ou da miséria e desejosas de se integrarem, enquanto tais, no melting pot da nação americana.
A sociedade americana é hoje um espelho e o mais avançado exemplo das sociedades multi-étnicas e multi-culturais que se vão construindo por todo o mundo, naturalmente com as características específicas das suas origens e da sua própria evolução, mas agindo e comportando-se em ambientes urbanos – isto é, inteiramente organizados pela mão humana –, no meio de sinais omnipresentes de abundância económica e de constantes inovações técnicas, onde um número crescente de indivíduos aspira não apenas a alguma ascensão social mas também a ter uma palavra a dizer sobre as decisões que modelam o sentido da vida colectiva em que estão inseridos. Isto está a pôr em causa a legitimidade e a organização do poder político dos países, onde os regimes democráticos se constituem como modelos inultrapassáveis e nos quais as populações mais instruídas e economicamente confortáveis se revêem mas, simultaneamente, as intermediações partidárias e algumas das suas práticas políticas (eleitoralismo, demagogia, carreirismo, conluios de interesses, corrupção) se vão tornando obstáculos ao que é a essência da democracia: a participação dos cidadãos no governo da sua nação.
Ora, apesar da aparente solidez do seu sistema bi-partidário, os Estados Unidos parecem estar a viver um período de enfraquecimento da solidariedade política nacional, não conseguindo negociar as suas divergências sobre as finanças da União, ao ponto de fecharem temporariamente uma parte significativa dos serviços públicos, cenário que pode vir a repetir-se já no início do novo ano. E não se sabe até quando a política financeira e monetária seguida nos últimos anos conseguirá os necessários consensos para ser mantida, um tópico que pode ser objecto de pressões internacionais, nomeadamente no quadro das relações bilaterais com a Europa, com os países emergentes e principalmente com a China. Fica então a pergunta sobre se as oposições caseiras suscitadas pelo presidente Obama não serão, no fundo, derivadas de velhos ressentimentos alimentados no “yankismo” mais tradicional, ou se, pelo contrário, serão sinais anunciadores de um período de declínio e retraimento externo em que aos seus governos interessará principalmente conservar o nível de bem-estar a que a sua população se habituou no último meio-século.
Em tal quadro, a construção europeia vive um período de grandes hesitações. As eleições alemãs deram o que se esperava. Os partidos eurocépticos, nacionalistas e xenófobos recrutam e aumentam as suas votações em diversos países, havendo já grande expectativa sobre a composição ideológica do próximo parlamento europeu. Mas, mau-grado a crise económica e financeira que grassa na Europa, países como a Ucrânia vêem as fracções mais modernas das suas sociedades baterem-se nas ruas para uma maior aproximação a este espaço de liberdade e bem-estar, repudiando uma tutela russa de que têm amarga memória. Será – com toda uma outra experiência história – também o caso da Turquia, aqui entre o cansaço de uma tutela militar autoritária (que todavia impôs o laicismo) e o espectro de um retorno a uma cultura islâmica vista como retrógrada. Além da reconsideração da sustentabilidade económica do seu “modelo social”, face ao mundo actual (que poderá obrigar em breve a uma dificílima revisão dos tratados), esta questão da abertura da União Europeia ao que resta do Leste pós-comunista e ao ex-império otomano (com reflexos inevitáveis em toda a Ásia Menor) é provavelmente a decisão política mais crucial que ela terá que tomar, como sempre com enormes riscos de fracassos e efeitos perversos mas também com oportunidades para tentar um novo reequilíbrio das tensões mundiais e dar ao mundo um exemplo de superação dos velhos antagonismos nacionais.
Neste Outono, os suíços recusaram em referendo (por 65 contra 35% dos votos expressos) uma proposta de lei para limitar os vencimentos mais elevados a 12 vezes o mais baixo salário praticado na mesma empresa. Sabemos que é discutível a legitimidade e o efeito deste plafonamento das remunerações de trabalho numa economia que vive essencialmente da sua expansão ou crescimento (e havendo, como há, sistemas fiscais de base progressiva que procuram obter uma mais justa redistribuição dos rendimentos no plano nacional). Mas também há quem sustente que uma das causas das dificuldades actuais da economia mundial está no excesso dos ganhos que os níveis superiores da classe dos gestores das grandes empresas (multinacionais) conseguiram impor aos próprios accionistas, mediante o uso de diversos mecanismos muito sofisticados e a manipulação da informação privilegiada a que só eles têm acesso (fenómeno que Galbraith antecipou desde os anos 60 com a noção de “tecnoestrutura”). Nestas condições, uma imposição de limites deste tipo poderia ter resultados interessantes, com reforço da solidariedade interna por virtude de uma maior visibilidade das contas e uma distribuição mais equitativa dos frutos do trabalho colectivo da empresa. Por tais razões (e sendo nós aqui sobretudo interrogativos), suscita-nos as maiores dúvidas a argumentação usada por J. C. Espada (“Referendo na Suíça: uma nobre lição democrática”, Público, 2.Dez.2013) quando escreve: «[O combate à pobreza] não reside fundamentalmente na distribuição igualitária da riqueza já existente, nem na captura de mais impostos, mas crucialmente depende da criação de mais riqueza. A riqueza não é um stock fixo que deve ser distribuído igualmente. É um fluxo – que pode aumentar, ou ficar estacionário, ou pode diminuir. A chave para melhorar a condição de todos, a começar pelos mais pobres, é que o fluxo possa crescer. E para que o fluxo possa crescer, é necessário que as pessoas que querem ir mais longe acreditem que poderão obter frutos do seu esforço criador. Neste sentido, a criação centralizada de tectos salariais é um incentivo contrário à criação de mais riqueza.». De facto, a riqueza deve ser vista como um fluxo, mas isso nada nos diz quanto ao modo da sua distribuição, que tanto pode concentrar-se privilegiadamente em determinados patamares desleixando os sectores mais atrasados (como terá acontecido durante o último século entre as nações industriais e o mundo “sub-desenvolvido”) como pode ser assegurada de maneira mais equilibrada mediante diversas formas de intervenção humana – sem que tenha de se pôr em causa o incentivo ao progresso e o premiar do esforço (mas também a poupança e a contenção no consumo), em vez da deseducativa gratuitidade e da estimulação do parasitismo. Além de que não se tratava de uma «fixação centralizada» (tecto quantitativo estabelecido pelo governo?), mas antes fosse até mais provável que resultasse um incremento da concorrência entre empresas e da mobilidade internacional dos altos cargos, em contexto de economia de livre concorrência.
Y a-t-il un parti intelectual en France?, pergunta o politólogo Daniel Lindenberg na capa do seu último livro, acabado de publicar. O texto desenvolve-se quase todo através da paisagem histórica e da filosofia política francesa da modernidade, mas poderia transpor-se para os tempos conturbados hoje vividos pela “esquerda” partidária deste país, que tanto influenciou o nosso num passado ainda pouco distante. O “partido intelectual” de que nos fala o autor é o suposto poder de influência que uns poucos, privilegiados de intelecto e de relações sociais mas sem mandato electivo ou cargo institucional, teriam sido capazes de impor ao governo da França, em diversas conjunturas. Conluios judaicos, círculos maçónicos e anti-patriotas, jornalistas e académicos, escritores ou artistas – todos foram, mais ou menos, acusados desse pecado, sobretudo por parte de uma certa “imprensa de opinião” e por alguns dos mais auto-afirmados conservadores e reaccionários pensadores do país. Numa esquerda onde desapareceu o partido comunista (mas não a sua organização-de-massas CGT), onde minguou o esquerdismo sem que o ecologismo descolasse, e onde o anarquismo só reaparece no espaço público pelas más razões (quando há confrontos violentos em certas manifestações de rua), foi o PS de Mitterrand e sucessores que, nos últimos trinta anos, experimentou todas as subtilezas, cambiantes e contradições das políticas-de-grande-Estado, no continente sócio-cultural em que também os portugueses estão inseridos. Que José Sócrates tenha produzido uma tese de mestrado em Sciences Po. acerca do tema “A Confiança no Mundo: Sobre a tortura em democracia” tendo como alvo os Estados Unidos de Bush-filho, foi acontecimento absolutamente irrelevante; que Mário Soares tenha ido lançar um livro a Paris denunciando as malfeitorias da direita e do capitalismo, significa apenas que o seu nome é ainda reconhecido internacionalmente. Mas que Marine Le Pen e a sua Frente Nacional ameacem de novo nas sondagens alterar o panorama eleitoral francês, contando cada vez mais com a adesão de gente do mundo do trabalho que antes votava à esquerda ou mesmo comunista, eis o que constitui a mais severa e inquietante crítica para os partidos de esquerda, à qual os seus intelectuais deveriam bem prestar atenção e tentar perceber porquê.
O governo PSD-CDS tem vindo a desempenhar o papel sacrificial (para alguns, patriótico) que a conjuntura impunha, mas comporta-se mais como se fosse uma coligação de direita PPD-PP. Analisando o país como tendo essencialmente um problema de défice orçamental crónico (que faz engrossar a dívida quase a cada mês que passa), tem aplicado com rigor as medidas impostas pelos órgãos prestamistas internacionais (a “troika”): se é uma questão de desequilíbrio por excesso de despesa, corta-se nesta onde for possível e for mais fácil; e não bastando, face às urgências, aumentam-se ainda mais os impostos – como provavelmente reconheceria César das Neves (Aliás, há medidas destas que tanto poderiam ser contabilizadas do lado da despesa como da receita.). É justo dizer que todos estes cortes e aumentos têm sido temperados gradativamente segundo os níveis de rendimento da população: vislumbra-se aqui a costela “social-cristã” do partido de Paulo Portas e o que neste governo ainda existirá da componente social-democrata do partido maioritário. Mas sendo certo que metade (ou mais) do país não paga impostos directos (por insuficiência de rendimentos) e os “grandes” (empresas e particulares) têm fartos recursos para se eximirem das mais gravosas medidas fiscais que se lhes apliquem, cai então sobre três categorias o peso brutal da redução do poder de compra: a “classe-média”, sobretudo a mais abonada (nos seus rendimentos de trabalho e pensões de aposentação); a quase-totalidade da população (por via dos impostos sobre o consumo, iguais para todos); e os “assistidos do Estado social” (os mais pobres, devido às reduções dos diversos subsídios que os sustentam).
Porém, para além da discussão do balanceamento entre grau-de-austeridade e medidas-de-apoio-ao-crescimento (largamente teórica, ou então relevando da mera luta partidária), onde este governo tem cometido os maiores erros é na maneira com conduz politicamente todo este processo, possivelmente também na frente externa mas, sobretudo, no modo como escolhe os seus objectivos de governação, como escolhe os seus colaboradores mais directos, como toma as suas decisões, como as explica à sociedade e como reage às manifestações populares de natural descontentamento. Nestes aspectos, tem-se assemelhado por vezes ao mais patético da errática e mal-fadada experimentação governativa de Santana Lopes. Falar de «reforma do Estado» sem encarar de frente a blindagem constitucional e legal existente e a força das grandes corporações associadas às funções soberanas do Estado (partidos, justiça, defesa e segurança, impostos), na administração regional e local, na saúde e mesmo na educação é ignorar a realidade e querer atirar poeira para os olhos da população. E para brandir a perspectiva de um «Estado regulador» seria preciso enfrentar o problema dos conluios de interesses que se têm criado entre decisores políticos e empresários, em diversos escalões de importância.
Depois, vem o séquito de colaboradores próximos do governo onde, apesar do assinalável trabalho de uma CRESAP, se continuará a escolher mais por cálculo pessoal e fidelidade partidária do que por competência profissional, ao mesmo tempo que parecem multiplicar-se os assessores “pequenos génios” saídos da universidade (via juventudes partidárias e redes de conhecimentos familiares) e, sobretudo, a subcontratação a gabinetes de advogados de negócios e de outros peritos privados dos estudos que vão sustentar as decisões políticas finais, em substituição dos antigos gabinetes técnicos dos ministérios. Pelo menos, é este o retrato que se oferece ao simples cidadão.
Quanto ao modo de apresentar e gerir os diferentes dossiês políticos, aí entramos quase sempre na inépcia e por vezes no desastre. Não é apenas um erro de “casting” ou uma deficiente “política de comunicação”. São hesitações, que parecem o lançamento de “balões de ensaio”! (ou vice-versa?) São anúncios, logo retractados perante sinais de alguma oposição popular, enquanto outras medidas são prosseguidas inflexivelmente, deixando-nos desorientados sobre intenções, decisões e efeitos! Basta ver a diferença entre o que se tem passado na saúde (onde os cortes e economias têm sido contrabalançados com uma acção interessante sobre os preços dos medicamentos e negociação inteligente com as corporações) e na educação (onde o sorriso do ministro parece ser apenas o recurso psicológico para a ausência de quaisquer políticas socialmente convincentes), embora saibamos que tudo isto é pré-determinado por uma “ditadura das finanças” que, com Gaspar ou Albuquerque, se assemelha àquela com que o doutor Salazar se impôs inicialmente na vida política do país.
Na economia, desde Álvaro Santos Pereira que alguma coisa de significativo se tem tentado recuperar. Mas, em quê, se justifica a privatização dos CTT, que só abate uma parcela mínima à dívida pública? É a solução apontada para os estaleiros navais de Viana do Castelo a mais adequada quando se pretende ter uma crucial “estratégia nacional para o mar”? Foram os resultados das negociações com a banca, nos combustíveis fósseis, na electricidade, nas telecomunicações ou nas auto-estradas os que mais convinham ao interesse geral do país ou mais uma cedência aos grandes interesses privados (quiçá também para alimentar as boas relações externas com os governos do Brasil, de Angola ou da China)? São dúvidas e perguntas legítimas de quem não confia (e concedam que há razões para isso) nos discursos habituais dos nossos responsáveis políticos. 
O Tribunal Constitucional cumpre o seu dever; e nem sequer se pode acusar os juízes de cederem às suas simpatias partidárias. Mas, pergunta o leigo mais uma vez: para onde nos levará esta dinâmica de chumbar leis ordinárias com base em “princípios”, mais do que pela violação de alguma norma concreta da Constituição? Então um artigo de lei é constitucional se o legislador apresentar uma boa justificação, e não o é se esta for deficiente? Além disto abrir a porta a uma intensa “politização” do TC – não dos juízes, mas pelas oportunidades oferecidas aos agentes políticos com capacidade para lhes suscitar o exame –, cada sentença destas (mais as declarações de voto que lhes ficam agregadas) passará a constituir jurisprudência para as próximas pendências; o que significa que esta indispensável função de verificação da constitucionalidade das leis ficará cada vez mais entregue e fechada dentro do esotérico saber especializado dos juristas… e mais longe dos cidadãos.  
Em termos de resultados recentes e de luta política, pode dizer-se que: Troika 0 – Portugal 0; Tribunal Constitucional 1 – Governo 0; e Oposições 1 – Crato 0.
E perante tanta argúcia jurídico-político-económica, alguns perguntam-se já: é este país governável?
Quanto às oposições partidárias ao actual governo, além das críticas internas nas quais Pacheco Pereira se tem mostrado como o mais implacável adversário político (e que tenderão a agudizar-se quando se aproximar o final desta experiência governativa), a direcção do Partido Socialista lá acabou por engolir a palavra-de-ordem de “eleições já!”, trocando-a por um afastamento em toda a linha de qualquer convergência com Passos Coelho, preparando-se para durar nesta postura até à queda (prevista ou antecipada) do seu governo e para gerir como for possível o quadro político que resultar do processo eleitoral e das condições de dependência financeira externa que se verificarem nesse momento: com uma aliança com o CDS (mas sem Portas); em bloco central apadrinhado por um Presidente já quase de saída (e com outra liderança do PSD, quiçá Rui Rio); ou, mais dificilmente, governando sozinho. A pressão para “governar à esquerda” é grande e irá sempre em crescendo, com o alento que Mário Soares tem emprestado a todo o fogo-de-barragem contra as políticas governamentais e das instituições internacionais aqui relevantes. Mas basta ler o artigo absolutamente arrasador que o insuspeito Correia de Campos escreveu na imprensa (“Alternativas”, Público, 2.Dez.2013) para se perceber que uma forte corrente no campo socialista se oporá sempre a tal projecto (de “união das esquerdas”, ainda que só com apoio parlamentar, como poderia talvez António Costa ser chamado a negociar) e mais facilmente se entenderá com os “partidos neo-liberais” para um governo de “salvação nacional” que evite a saída do Euro e o afastamento da Europa.
Uma palavra tem ainda que ser dita sobre o novo partido – o «Livre - Liberdade, Esquerda, Europa e Ecologia» – cujo lançamento foi anunciado já perto do final do ano. É-nos grato reconhecer uma admiração pessoal por Rui Tavares, um ainda jovem inconformista que se bate pelas melhores ideias que encontra no seu campo ideológico, pratica em prejuízo próprio os valores de entreajuda pessoal (vulgo “solidariedade”) com indivíduos que não conhece e é capaz de bater com a porta quanto os “camaradinhas” o tentam convencer a “engolir sapos”. As palavras-chave escolhidas para legenda são apelativas mas nada nos dizem sobre o que poderá vir a ser a prática política de um tal partido – e o risco de invasão por oportunistas e trânsfugas com longa experiência da cultura partidária dos últimos vinte anos é real. Já a colocação “ao meio da esquerda” é compreensível, por procura deliberada de equidistância (como já aqui uma vez tentámos afirmar). “A esquerda” é que é capaz de não achar graça à intromissão.
As resistências sociais opostas às medidas de austeridade são, de todo, compreensíveis, normais e até saudáveis. Mas a cadência e a morfologia com que têm surgido os protestos no espaço público são reveladores da consciência dos vários sectores da população perante esta nefasta conjuntura. As grandes massas de população, como as que desceram à rua em Março 2011 e Setembro de 2012, revelam o bom-senso de não repetir o gesto automaticamente cada vez que são convidadas para tal pelos diversos “organizadores”, reservando-se para castigar os políticos-de-turno ou exprimir o seu silêncio eleitoral quando a oportunidade surge. Entretanto, cada qual vai agindo segundo o caminho que melhor lhe parece convir (eventualmente emigrando, explorando alguma brecha do Estado social ou combinando-se com próximos para uma acção comum útil) e mantendo intacta a sua liberdade de mal-dizer e mal-pensar tão habitual entre os portugueses.
Pelo contrário, os grupos e colectivos sociais organizados no local de trabalho, na vizinhança, no espaço político, na Net ou em actividades livres têm agora maior campo de actuação e melhores facilidades de recrutamento. Estas oposições são unânimes na sua rejeição às políticas governamentais, quaisquer que sejam as diferenças existentes (e são muitas) entre os protestantes. E os meios de comunicação social amplificam e massificam estes sentimentos. O que mostra o sentido quase-unívoco da opinião pública e da opinião da rua nesta conjuntura.
Mas é preciso não esquecer que também existem minorias-de-risco e minorias em risco. As primeiras são as que, tomadas pela revolta, estão dispostas ao uso de várias formas de ruptura, de infracção da ordem legal e da violência, simbólica ou mesmo física. As segundas são as que, silenciosamente ou menos, viram contra si próprias o desespero a que sua situação económica as conduziu ou espalham à sua volta essa mesma infelicidade.
Um último ponto (com votos risonhos de um melhor 2014). Entre aquilo que anima a sociedade, depois do fado, a dieta mediterrânica ascendeu a património cultural imaterial da humanidade. É um óptimo incentivo para a cultura da batata e do azeite, e para o robustecimento da nossa restauração. Mas se não há ainda Nobel para premiar o melhor “chefe” cá do burgo e enquanto as televisões se (nos) entretêm com cada vez maiores doses de futebol, talvez o nosso herói Cristiano (que levou às costas a selecção ao mundial do Brasil) venha ainda a pôr o país em lágrimas de alegria. É, sem dúvida, o nosso melhor artigo de exportação.
JF / 28.Dez.2013

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Desporto, negócio e política

Foi recentemente anunciado que em 2015 se realizarão no Azerbaijão, em Baku, os primeiros Jogos Europeus, réplica dos Jogos Olímpicos mas restritos aos atletas do “velho Continente”. Dado o gigantismo atingido pelas comemorações olímpicas, desde há várias décadas que vinha sendo sugerida por alguns uma certa descentralização destas competições desportivas, seja pela via de encontros de base geográfica continental, seja (mais raramente) por uma repartição por vários países, no mesmo ano olímpico, dos desportos da neve (que já se fazem desde a década de 1930, embora agora em anos intervalares), dos desportos de equipa (basquetebol, voleibol e outros) e dos desportos de água (natação, remo, vela, etc.), reservando para encerramento da olimpíada as provas atléticas mais convencionais (o atletismo, a ginástica, o halterofilismo, as “artes marciais”, o ténis, etc.).
Os jogos regionais (continentais) surgiram já há mais de cinquenta anos, realizando-se regularmente os Jogos Pan-Americanos, os Jogos Asiáticos e mais recentemente os Jogos Africanos, a que finalmente se irão juntar os Jogos Europeus. Mas outras competições multi-desportos se foram criando: Jogos Mundiais Universitários (Universíada), os Jogos do Mediterrâneo (que talvez agora desapareçam) e os Jogos da Comunidade Britânica são talvez dos mais conhecidos mas houve outros, tendo até chegado a existir uns Jogos da FISEC (do desporto escolar católico) e uns Jogos Desportivos Luso-Brasileiros (agora modestamente substituídos por uns Jogos da CPLP) – sempre sobre um modelo organizativo e simbólico copiado do movimento olímpico moderno.
É certo que muito mudou desde que o sonho universalista, pacifista e atlético (isto é, físico-estético-mental) do barão Pierre de Coubertin se começou a tornar realidade, numa época de nacionalismos exacerbados mas também de crenças fortes na proximidade de um “mundo novo”, inspirado pelos melhores exemplos históricos da democracia ateniense, das aspirações modernas das “luzes” e da romantizada ética cavaleiresca.
Não por acaso, o desporto moderno nasceu na segunda metade do século XIX por iniciativa de elementos das decadentes aristocracias europeias que lograram interessar, como espectadores e depois como praticantes, massas crescentes de jovens urbanos pertencentes às classes sociais mais pobres e numerosas. Não se originou nas práticas recreativas tradicionais da vida camponesa (com os jogos da malha, do varapau, etc.) nem nas competições lúdicas da antiga nobreza (as liças, a caça). Compreensivelmente, integrou num espírito de emulação cortês actividades físicas ainda utilizadas na preparação militar (como a equitação, a esgrima ou o tiro de pontaria com armas de fogo portáteis) ou lazeres aventurosos das classes ricas (como as regatas vélicas) mas associou-as rapidamente a formas populares de confronto inter-individual (como a luta ou o pugilismo) e, sobretudo, à regulamentação de amigáveis pugnas inter-grupais experimentadas entre colegiais que era necessário entreter nos recreios das escolas públicas ou nos campus das universidades: os jogos de bola saltitante (o futebol e depois outros), o rugby, o jogo-da-corda, o remo, etc. Finalmente, já dentro de um processo racional protagonizado por “educadores físicos”, foram formalizados os torneios competitivos destinados a medir as capacidades atléticas individuais mais básicas (correr rápido ou longas distâncias, saltar, lançar, nadar) ou aquelas (forças ou destrezas) proporcionadas pelos novos inventos das “artes mecânicas”, tais como a bicicleta, a motocicleta, o automóvel ou a moto-náutica.      
No pensamento destes ideólogos da educação física prevaleceu sempre um conjunto de objectivos e valores morais de pendor reformador e fraternal, adaptados às nascentes sociedades de massas: disciplinar a agressividade natural; competir com regras e respeito pelos outros concorrentes; premiar o mérito e o esforço (“Glória para os vencedores! Honra para os vencidos!”); igualizar à partida as classes sociais e as nações, respeitando a diversidade étnica e religiosa; incluir as mulheres neste verdadeiro processo de regeneração social.
Tais referências foram sempre simbolicamente enfatizadas nas grandes festas desportivas em que se tornaram os campeonatos europeus ou mundiais de várias modalidades que se iam sucedendo ou, a fortiori, os Jogos Olímpicos.
Como seria inevitável, tais princípios de convivência social foram subvertidos por atletas, treinadores ou dirigentes dispostos à trapaça, pela ânsia do efémero momento de glória ou popularidade proporcionado pelo facto de se ter sido “o primeiro” ou “o vencedor”. Mas esses constituíram casos de excepção, sendo que largamente prevaleceu – entre os praticantes e na convicção dos espectadores – a ideia da disputa leal. A este crédito somou-se o princípio moderno e democrático que enformou o movimento desportivo desde o seu início, consistente no clube (com adesão livre e dirigentes eleitos) e na associação federativa e voluntária de tais entidades de base para constituírem agregações de âmbito local/regional, nacional e mesmo internacional, autónomas e fora da esfera do Estado, das igrejas ou dos partidos políticos. 
Contudo, o sucesso das competições desportivas no quadro das sociedades contemporâneas – progressivamente sempre mais urbanas, individualistas, competitivas e espectaculares – suscitou bem cedo o interesse de negociantes que se propuseram organizá-las com entradas pagas para um público indiferenciado, bem como dos meios de comunicação social que aí descobriram um importante filão de expansão das suas actividades. Em três momentos diferenciados, a imprensa, a rádio e a televisão multiplicaram decisivamente o impacto do fenómeno desportivo, contribuindo para a promoção da imagem dos “deuses do estádio” (geralmente saídos da pobreza e decerto do anonimato, à semelhança das “stars” do cinema ou da canção) e para a geração de identidades clubísticas que vieram dar um sentido de pertença às multidões de assalariados e outras classes populares, substituindo as antigas identidades comunitárias religiosas, camponesas ou dos ofícios artesanais. As claques de “fans” (abreviatura de fanáticos, em inglês) são sobretudo uma expressão exagerada e desregrada disso mesmo.
Este clubismo, emocional e exclusivo do outro, combinou-se por vezes com o nacionalismo e a xenofobia modernos. Em ambos os casos, a afirmação do eu colectivo é feita sobretudo por oposição ao que é diferente (ou mesmo pela sua negação), corporizado pelo estrangeiro (abstracto ou concretizado num povo determinado) e pelos adeptos rivais, que assim se tornam adversários/inimigos (veja-se o comportamento e o imaginário de muitas das actuais claques de futebol). Esta aproximação foi sobretudo explorada pelas ideologias extremistas do fascismo e do nazismo nas décadas em que se assenhorearam do poder político em vários países da Europa. Mas foi também tolerada ou convenientemente aproveitada em outros regimes políticos, em especial no plano das suas relações com as outras nações. Vibrar com o içar das bandeiras e a execução dos hinos dos vencedores e, sobretudo, contabilizar os títulos e as medalhas e estabelecer rankings de sucesso desportivo tornou-se uma forma adicional de estimular a competição entre países e angariar prestígio para os regimes ou os governos em funções. Por outro lado, a construção de infraestruturas e equipamentos para tal fim específico, bem como a organização de grandes competições internacionais, levou os poderes públicos a assumirem um papel importante neste domínio, ao mesmo tempo que iam pondo de pé uma “política para a juventude e o desporto”, até então inexistente. Entraram neste campo a criação ou o apoio oficial a organizações de massas para os jovens: Komsomol, Balilas, Hitlerjugend, Flechas y Pelaios, Mocidade Portuguesa ou, noutra versão, escuteiros, Maisons de la Jeunesse, associações de estudantes, IPJ, etc. – além de formas variadas de afastar os jovens da cena política ou da tentação da delinquência, aliás com resultados bastante discutíveis.
Tal como no sistema político, o modo democrático de resolver a questão da luta pelo poder não impediu que emergissem ocasionalmente dirigentes desportivos populistas ou corruptos que estimularam aquelas tendências negativas dos movimentos sociais ou facilitaram a mercantilização do ideal desportivo. A questão do amadorismo e da profissionalização dos atletas foi um bom teste para o confronto entre estas duas lógicas em que, ao cabo de algumas décadas, o próprio movimento olímpico, o principal paladino do desporto-pelo-prazer-de-o-praticar e das recompensas simbólicas, acabou por soçobrar. Não quer isto dizer que competições entre profissionais não possam ser tão, ou mais, leais e interessantes de contemplar do que entre atletas amadores. Mas a ideologia desportiva do “desprendimento” tenderá provavelmente a ceder o passo ao “cálculo” e à obsessão do resultado. Não por acaso, foi nos países socialistas do Leste que inicialmente proliferou a política dos “atletas do Estado” e se fizeram alguns ensaios de “manipulação químico-hormonal” muito contestados. 
Tal como nos circos romanos ou nas jutas medievais, a adesão da populaça a tais eventos forneceu uma fantástica base social de apoio ao desporto-espectáculo do século XX, ao mesmo tempo que o dinheiro dos bilhetes e das quotizações, em grande escala, permitiam uma “caixa” atractiva para gerir. Porém, foi a televisão, já num âmbito cada vez mais mundializado, que permitiu um novo salto-em-frente, tanto na popularização do fenómeno como no volume do negócio financeiro proporcionado.
Hoje, o desporto-espectáculo constitui um sector significativo da economia, uma componente do processo sócio-cultural da chamada globalização e, ironicamente, um factor de estímulo e arrastamento para a prática de actividades físicas de enormes massas populacionais das classes médias e populares, já sobretudo orientadas para a promoção da saúde, o prazer, a auto-superação ou o convívio (sem esquecer a interiorização de determinados estereótipos sociais).
Por tudo isto, aguardaremos com interesse os tais Jogos Europeus de Baku, precisamente num país do Cáucaso de religião predominante muçulmana. E afirmámos aqui, há pouco tempo, que foi uma pena a não atribuição a Istambul da organização dos Jogos Olímpicos de 2020, pois seria talvez uma oportunidade interessante para aproximar os povos do Ocidente e do Islão – decerto numa base de interesse material (como demonstra o campeonato do mundo de futebol que irá ter lugar em 2022 no Qatar!), mas ainda assim evocando alguns valores de referência do melhor que pode existir na prática desportiva: sobretudo, a convivência pacífica e a ética da gratuitidade.

JF / 20.Dez.2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Mandela

As unanimidades à volta de uma grande personalidade pública são raras e às vezes suspeitas. Mas neste caso, compreendem-se.
De facto, Mandela travou ímpetos, garantiu continuidades, forçou a pacificação de uma sociedade segmentada e ulcerada, o que foi também resultado da corajosa acção de De Klerc, com quem partilhou o Prémio Nobel. Mas havia sido condenado à prisão nos anos 60 pelo seu patrocínio à luta armada do ANC, e isso é muitas vezes silenciado pelos que gostam de endeusar os grandes líderes, tal como o bom acolhimento que fez ao regime de Kadafi quando este preferiu juntar-se aos países da África negra, em vez do pan-arabismo.
Admite-se que, para um africano, cristianização, livre comércio, direitos humanos e outras referências propostas (e quase sempre impostas) ao mundo pelos Ocidentais sejam, culturalmente, “coisas de brancos”, sempre relativizadas pelo peso histórico da escravização industrializada a que eles submeteram os povos de África. Mas um homem com a superior inteligência de “Madiba” podia talvez ter sido mais cauteloso com a escolha dos seus “amigos” como foi respeitador da identidade dos seus “inimigos” – disposição de espírito que, ajuizada e sabiamente, o levou a lutar mais contra as injustiças da história do que por ódio a alguns dos seus protagonistas.
É possível que tal opção pela luta violenta – em vez da acção política tradicional que aquele seu partido prosseguia desde há décadas, ou mesmo da acção directa não-violenta que Gandhi ali semeara no princípio do século – tivesse uma boa justificação, perante a intensificação da política de apartheid imposta pelo Partido Nacional e os sectores brancos mais radicais desde o rompimento do vínculo que ligara o país ao Reino Unido.
Mas é também quase inevitável que, ao seguirem essa via da violência, os irredentistas criem uma tal dinâmica de “olho por olho” que, quando atingem o cume da vitória, esta já não possa ser festejada apenas em ambiente de fraternização. A violência empregue na luta prolonga-se muitas vezes em actos de vingança individuais ou colectivos, em novos regimes opressivos (de sinal contrário) ou em conflitos abertos entre os vários grupos da coligação vencedora. Quase sempre, os destemidos guerrilheiros de ontem passam a polícias ou militares ao serviço do novo poder, quantas vezes abusando das populações pelo simples facto de serem homens-em-armas. Outras vezes, são esses antigos combatentes que exigem benesses e recompensas, criando problemas e desencadeando conflitos armados como os que têm ocorrido na Guiné-Bissau, no Zimbabué ou em Timor-Leste.
Nelson Mandela deve ser sobretudo recordado como um homem que, depois de ter obtido a vitória com que toda a vida sonhara para o seu povo, soube servir-se do poder que lhe caiu nas mãos para travar aqueles ímpetos vingativos, agónicos e opressores, teve a coragem de se afastar da sua própria mulher Willie e do grupo de facínoras que a rodeava, e foi capaz de conter as tendências mais duras e racistas do seu movimento. Propôs – e em grande medida conseguiu – um autêntico processo de reconciliação nacional, também com a inestimável ajuda do arcebispo anglicano Tutu. Conseguiu evitar a saída de brancos para o estrangeiro, bem como a fuga dos capitais, preservando a eficiência da economia agrária, industrial e terciária do país. E terá aceite destruir e não reclamar para si a capacidade nuclear bélica que o regime anterior deteria – o que foi de um valor inestimável para todo o sub-continente africano, e não é geralmente destacado pelo analistas.
Mandela só não logrou evitar o aumento da delinquência urbana e da violência nas ruas, fruto de armas a mais nas mãos de quaisquer uns e de quantidades imensas de gente sem trabalho e que se julgam com direito aos bens que vêem tão mal distribuídos entre as diversas camadas sociais. Mas ao afastar-se voluntariamente do poder da forma como o fez, deu ainda uma enorme lição a todas as lideranças políticas da região e até do mundo.
Embora de forma não-confessada, Mandela foi talvez um extraordinário exemplo de feliz combinação do pragmatismo e da resiliência herdadas do colonizador britânico com a magnanimidade própria de uma aristocracia africana.

JF / 5.Dez.2013

sábado, 30 de novembro de 2013

Técnica, economia e sociedade


Há anos atrás, discutia-se muito na comunidade internacional dos sociólogos a importância do factor tecnológico (do progresso técnico, dizia-se então) na evolução das sociedades. Estava-se então na época da difusão acelerada dos dispositivos automáticos de produção industrial (a “automação”, a “robótica”), bem antes de surgir a vaga avassaladora da informática, dos computadores e das telecomunicações dos tempos actuais. Aqueles cientistas tendiam geralmente a criticar a ênfase dada por outros a tais factores e mais facilmente contrapunham a esta perspectiva a “construção social das técnicas”, identificando aliás um filão de pesquisa e de apreensão dos fenómenos sociais que se estendeu para outros domínios, como a própria produção da ciência ou a germinação das culturas juvenis, por exemplo.

Esta negação do primado da técnica na evolução da vida social tem toda a justificação se a atitude a criticar é o que poderemos designar por “tecnicismo”, isto é: a convicção interiorizada no pensamento dos sujeitos de que a tecnologia – as máquinas, os dispositivos e os respectivos saberes operativos – é sempre capaz de resolver problemas e dar respostas a questões ou necessidades sociais que parecem insolúveis ou impossíveis; se não hoje, certamente um pouco mais tarde. Uma tal disposição de espírito decerto que menospreza as condições económicas em que cada inovação técnica pode, ou não, difundir-se e provavelmente ignora o papel específico desempenhado pelas dinâmicas sócio-culturais, quer na travagem, quer na aceitação ou aceleração da difusão de tais mudanças, como têm vindo a mostrar as diversas ciências sociais, desconhecendo também as relações mais fundamentais postas a descoberto pelas análises contemporâneas sobre a evolução histórica.

Vejamos alguns exemplos de manifestações concretas daquilo que estamos a afirmar – sendo certo que tais exemplos não constituem qualquer prova, mas apenas facilitam a comunicação e a apreensão do que se sustenta por parte de um leque mais alargado de pessoas. Falando do caso do Portugal que temos sob os nossos olhos, é inegável que o país se modernizou tecnicamente nos últimos trinta anos se pensarmos na rápida difusão dos sistemas tele-informáticos, na profusão de “electro-domésticos” que hoje existem nos lares portugueses ou na superação dos atrasos existentes em infraestruturas e equipamentos no âmbito das comunicações rodoviárias, da saúde pública, do ensino e da cultura, aproximando-nos dos países europeus da nossa vizinhança. Simplesmente, por não terem uma base de sustentação económica suficiente e terem sido edificados em condições de endividamento pouco acauteladas, tais bens estão hoje largamente sub-aproveitados ou carentes das necessárias despesas de manutenção. Ou seja: por voluntarismo político ou encandeamento pelas facilidades de crédito oferecidas, muitos investimentos de modernização técnica foram feitos sem que a economia realmente os reclamasse e sobretudo os pudesse sustentar. Este é o drama colectivo do nosso presente, mas vários dos que conhecem aprofundadamente a história do Portugal oitocentista afirmam que idêntico tipo de desajustamento também então aconteceu com a nossa inicial industrialização e as políticas de modernização infraestrutural do Fontismo (estradas, ferrovias, telégrafo, portos).

A mecanização e a organização em grande série da produção industrial permitiram, indubitavelmente, alcançar dois resultados positivos e de grande alcance para as sociedades onde tal ocorreu. Por um lado, embarateceram o custo de produtos de uso corrente, pondo-os ao alcance da bolsa de um número muito mais alargado de consumidores. Isto foi um efeito económico, de alargamento do mercado (que, pelo seu sucesso, decerto deu lucros avantajados aos seus promotores), mas com claros reflexos positivos e imediatos na população. Um segundo efeito positivo deveu-se à possibilidade de dar trabalho a um maior volume de trabalhadores, homens e mulheres, que não dispunham de especiais qualificações para o desempenho de tarefas na indústria e a quem agora se pedia apenas para executar gestos simples, embora repetitivos e por isso mesmo cansativos: geralmente, tal oportunidade foi aproveitada por antigos camponeses (alguns provindo da imigração de territórios longínquos) e também por mulheres até então confinadas à esfera doméstica. Porém, este progresso técnico e económico teve também um custo social assinalável. Ele retirou, pouco a pouco, o espaço aos operários qualificados de ofício, que dispunham de algumas vantagens no mercado de trabalho face ao poder económico do patronato. As novas máquinas e as tarefas produtivas agora desagregadas em gestos elementares que qualquer um podia realizar eliminaram em algumas décadas o processo social das carreiras operárias que se iniciava com alguns anos de aprendizato, no próprio local de trabalho, a que se seguia uma ascensão lenta mas segura e irreversível de desempenhos profissionais num certo domínio de especialização (com designações como aspirante, oficial de 2ª, oficial de 1ª, etc.) de que podem ser exemplos os torneiros-mecânicos, os caldeireiros, os pedreiros, os marceneiros e tantos outros; e que atingia o tope com as posições de contramestres, mestres e mestres-gerais, que eram pessoas que, embora tivessem tido escolaridades elementares, se haviam guindado por mérito profissional próprio ao domínio de todos os “segredos da sua arte” e se consagravam agora a tarefas de coordenação, gestão e controlo do processo produtivo e de todo o pessoal da sua especialidade. Não que estes ofícios manuais (ou do uso competente de máquinas e ferramentas) tivessem sido banidos definitivamente; mas foram contudo reduzidos a pequenos núcleos adstritos a funções de manutenção ou reparação de equipamentos, e já não responsáveis pela produção de bens, de que resultou também uma depreciação do valor económico do seu trabalho, dos seus salários. É certo que, mesmo antes disto acontecer, já existiam sectores da indústria que empregavam largos volumes de mão-de-obra pouco ou nada qualificada, como as operárias da fiação mecânica, os serventes da construção civil ou os estivadores portuários – para já não falar nas crianças que também foram então lançadas para as oficinas. Para todos estes foi indiferente a intensificação da mecanização, salvo quando esta também se pôs a economizar empregos. Mas aquela outra “elite” ou “aristocracia” operária, orgulhosa do seu saber profissional e da sua utilidade social constituía, de facto, um valor e um património que o industrialismo do século XX destruiu e sacrificou.

Um terceiro exemplo de enorme magnitude que nos está ainda a afectar em pleno é o dos impactos brutais da industrialização sobre o meio ambiente natural, intensificada de maneira mais dispersa por todo o planeta no decorrer do último século. As alterações climáticas, a rarefacção da camada de ozono, a elevação da temperatura dos oceanos ou a degradação da qualidade das suas águas podem não ter ainda comprovação científica clara de que sejam um resultado do modelo económico dominante, com as suas poluições industriais, a energia assente na queima dos combustíveis fósseis, a super-concentração urbana e um consumo de massas baseado no “usar e deitar fora”. Mas as percepções de uma parte mais informada das populações do globo, com reflexos sobre algumas das decisões das elites políticas, já incorporaram nos seus raciocínios essa relação de causa-efeito, encarando de maneira crítica ou com desconfiança o “modelo de desenvolvimento” vigente. 

Finalmente, atente-se na enorme pressão que as atitudes sociais dos países ocidentais mais ricos têm vindo a exercer nas últimas décadas sobre as ciências e tecnologias da saúde e bio-genéticas, no sentido de que estas descubram maneiras de combater mais eficazmente as doenças e prolonguem a vida o mais possível, bem como façam recuar as fronteiras da natureza, nomeadamente quando às possibilidades da procriação humana, aliás com riscos visíveis de natureza ética. 

Nestes vários exemplos, temos casos em que o dinamismo prioritário e dominante parece situar-se nos domínios da técnica, sendo que a economia e “o social” podem, ou não, acompanhar esses progressos. Temos outros em que uma frutuosa combinação da técnica e da economia levou a grandes mudanças nas sociedades, porém, ambivalentes: umas positivas e outras negativas. O terceiro exemplo mostra-nos a tomada de consciência de uma parte ainda restrita de humanidade sobre efeitos nefastos a longo prazo da economia e da técnica actualmente dominantes, a contra-corrente de interesses poderosos e ao lado da desatenção e ignorância da maioria, só capaz de enxergar os benefícios do curto prazo. E temos por último um caso de efeito dinâmico e de liderança por parte de já amplos sectores das sociedades contemporâneas que, aqui sim, provocam um efeito de arrastamento na produção científica.

Este último caso corporiza da melhor maneira uma subordinação da técnica à procura social. Mas nem todos os exemplos revestem a aparente benignidade deste processo. Lembremos que a investigação sobre a energia atómica foi muitíssimo acelerada pela busca de uma arma decisiva para vencer a II Guerra Mundial, como já tantas vezes acontecera na história mas talvez nunca com um “galgar de patamar” tão significativo como ocorreu dessa vez. É certo que foi uma decisão de um restritíssimo grupo de homens, mas o que estava em jogo era a sociedade no seu conjunto. E foi esta que justificou e provocou mais este salto nos avanços científico-tecnológicos.

Não há que menosprezar o papel da tecnologia na evolução humana. Em primeiro lugar, porque que todos os passos notáveis de inovação técnica resultam de um esforço prolongado e sistemático de investigação científica. Já não estamos no tempo das descobertas geniais de uma mente privilegiada (modelo Leonardo da Vinci), ou sequer dessa feira das consolações do Portugal de há meio-século que eram as medalhas-de-ouro e as menções-honrosas do salão dos inventores de Genebra. Os recursos hoje consagrados à qualificação das populações e à sustentação dos sistemas de investigação científica são considerados investimentos, a despeito de serem custos que muitos ajudam a suportar. Em segundo lugar, também porque, diferentemente das conquistas sociais e dos progressos da economia, os avanços científico-tecnológicos, uma vez adquiridos, tornam-se irreversíveis (para o melhor e para o pior). A técnica é pois, também ela, um produto do saber humano, que pode ter utilizações com intenções e efeitos muito diferenciados de um ponto de vista moral ou político.

Igualmente, a economia deve ser encarada sem preconceitos ideológicos. O pensamento político de esquerda habituou-se desde há mais de século e meio a encarar negativamente os sistemas económicos modernos, rebaixando-os sob os epítetos de “capitalista”, de “exploração do homem-pelo-homem”, “imperialista”, “de mercado”, “neo-liberal”, etc. Se, em certa medida, os poderes políticos democráticos conseguiram corrigir alguns dos aspectos mais detestáveis desta economia (abuso do patrão sobre o assalariado, concentração desmedida da riqueza, etc.), orientando-a no sentido de contemplar melhor objectivos benéficos para a maioria (na distribuição do rendimento, na saúde, educação ou previdência social), os ensaios para criar um regime económico alternativo, de base racional e administrativa, organizado pelo Estado, conduziram até hoje a patentes fracassos. E as experiências de “economia social” (cooperativismo, mutualismo popular, entreajuda solidária local, etc.), sendo humanamente muito ricas e pedagogicamente interessantes, nunca conseguiram mais do que constituir “ilhas” de refúgio para valores democráticos e comunitários, mas sem capacidade para se imporem no quadro mais amplo das sociedades urbanas contemporâneas. No contexto actual de globalização, a economia também pode ser vista como um tecido de relações sociais que, pela primeira vez, unificou o mundo, ultrapassando as fronteiras nacionais, as línguas, as crenças religiosas e outros particularismos culturais, traduzida por dados estatísticos e por uma contabilidade monetária imediatamente compreensível e significativa em qualquer ponto do planeta. É uma aquisição que não deve ser menosprezada. E talvez aqui a economia esteja “em avanço” sobre outros mecanismos de controlo social, nomeadamente por não existir um poder político mundial representativo capaz de estabelecer regras de regulação mais eficazes em certos domínios, como sejam as transacções financeiras, o comércio internacional ou os standards mínimos para um trabalho digno e gratificante.

Voltemos ao ponto de partida. Haverá alguma razão fundamentada para atribuir uma prioridade aos factores técnicos na marcha da sociedade? Há autores que falam de uma 1ª revolução industrial (a do carvão e da máquina a vapor, que transformou a fábrica, a navegação e criou o caminho-de-ferro), de uma 2ª revolução industrial (a proporcionada pela electricidade e o motor de explosão, na origem do automóvel e do avião) e de uma 3ª revolução industrial (inaugurada pelo aproveitamento da energia nuclear). Mas esta é uma periodização essencialmente útil para sistematizar a evolução das tecnologias de produção (como igualmente poderíamos fazer para as armas, os utensílios domésticos, etc.). É muito discutível que sirva para o fim que aqui temos em vista.

Por outro lado, é verdade que componentes genuinamente próprias da vida social podem impor travagens ao progresso técnico ou estimular o seu contínuo borbulhar, como podem ignorar ou combinar-se com modelos económicos de modo muito diverso. Atentemos no fenómeno das religiões, que parece quase imune às condições técnicas e económicas conhecidas pela história dos últimos dois milénios, pelo menos, e que só recentemente tem registado algumas alterações significativas por força de mudanças internas à vida social, como sejam o surgimento da filosofia das luzes, o desenvolvimento da ciência e o alargamento da educação. Também se sabe que os modos de vida tradicionais das culturas camponesas – fosse da exploração agrícola familiar de modelo europeu, fosse dos pastores itinerantes das estepes asiáticas, das savanas africanas ou das pradarias americanas – opuseram sempre fortes resistências a deixarem-se transformar em assalariados com rendimento assegurado e que só o fizeram, com ou sem emigração, quando os reduziram à fome mediante cortarem-lhes as bases da sua sustentação económica. 

Hoje, nas sociedades ocidentalizadas (ao modelo americano), as pessoas são tendencialmente adeptas das inovações técnicas (veja-se a paixão de tantos pelas viaturas mecânicas ou os gadgets da comunicação interpessoal) e amigas da economia do consumo ilimitado de bens materiais, só parecendo emergirem reacções de crítica, recusa ou desconfiança perante efeitos perversos potencialmente catastróficos como sejam os “engarrafamentos urbanos”, a espionagem electrónica ou as crises de desregulação económico-financeira. Eis, pois, mais alguns exemplos de relações específicas entre (e intra) estas realidades com estruturação própria mas que, simultaneamente, interferem muito entre si, de maneira complexa.

Se considerarmos, por simplificação, as três variáveis – técnica, economia e sociedade – como as que fundamentalmente condicionam, no médio/longo prazo, o futuro de cada um de nós, a nossa “tese” é então a de que não devemos privilegiar a importância de qualquer uma delas sobre as restantes, mas que as três se condicionam mutuamente e de maneira equilibrada entras elas, sem qualquer “pré-determinação” de uma sobre as outras (como pretendia a filosofia marxista relativamente à economia). No detalhe de cada época e de cada campo de investigação científica e tecnológica ou de cada circuito económico particular (de investimento-produção-circulação-consumo) se jogarão então as combinações virtuosas que permitem mudanças universais significativas – se de sentido civilizacional positivo, negativo ou controverso, é uma outra questão que não se coloca no mesmo plano – ou, pelo contrário, os bloqueios que as impedem. Embora decerto rudimentar, será esta uma visão aceitável do processo histórico da nossa modernidade?

 

JF / 30.Nov. 2013

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