terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Memórias navais


Na bibliografia deixada por gente do mar distinguiram-se, mais perto de nós, as belíssimas obras de cronista de um Joaquim Pedro Celestino Soares com os seus Quadros Navais, ou João Braz d’Oliveira com as não menos famosas Narrativas Navais, que nos desenharam imagens e vivências muito características do século XIX português.
Depois, com a viração do século, outros “marujos” escreveram as suas memórias, de um tempo que foi desde a época dos navios à-vela-e-a-vapor até aos alvores do “Estado Novo”, muito espraiada pelos mares ultramarinos até ao Oriente pintado com arte por Wenceslau de Moraes ou Jaime do Inso. Lembramo-nos de Marinheiros de Portugal de Bernardo Mesquitela, de Escola de Mouzinho de Eduardo Lúpi, de No Mundo da Âncora de Travassos Valdez, de Histórias de Marinheiro de Óscar de Carvalho, de Navios e Marinheiros de Emílio da Silva ou ainda das Marinhescas e dos dois volumes de Marulho, de Joaquim Costa (que usava o pseudónimo De Macedo), todos um tanto tocados pelas nostalgias das juventudes já idas.
Na nossa geração, a veia literária de marinheiros tardou talvez mas, quiçá acossada pelo rolo esmagador das memórias e melancolias que são as novas tecnologias de comunicar, aí está agora uma corrente assinalável de gente-do-mar que não quer deixar a praça sem gravar alguma marca literária das suas vivências, sonhos e perplexidades. Como é compreensível, o cenário das últimas guerras coloniais está muitas vezes presente, tal como já acontecera com gente que palmilhou com as suas “botas cardadas” os trilhos e as picadas africanas, de Lobo Antunes a Vale Ferraz (ou àquelas que lhes sofriam os desalentos, como Lídia Jorge), sentimentos que também afloram entre os testemunhos de “cinzentos” que Barão da Cunha tem registado na sua colecção Fim do Império.  
Entre a nova vaga de talentos literários que narram estas aventuras “marujas” podem figurar O Quarto da Alva de Patrício Leitão, A Viagem da Corveta de Manuel Begonha, Era Só Eu e o Mar de Alvarenga Rua, Retalhos de Vidas de Marinheiros de Geraldo Lourenço ou Estórias do Arco da Vela de Roberto Robles. Mais escondidas no interior de relatos factuais, vislumbram-se também os estados-de-alma e sentimentos de diversos protagonistas que estão presentes em A Última História de Goa de Marques da Silva, no livro Bissau em Chamas de Reis Rodrigues e Silva Santos ou mesmo na colectânea Comandar no Mar, agora lançada. Mas, num país de aventureiros que nos legou Camões e Fernão Mendes Pinto e que dispõe agora de editores como Fernando Mão-de-Ferro (Colibri), a Âncora ou a Sextante (de João Rodrigues) dispostos a publicar coisas destas, não espantaria que o excelente e imaginativo ficcionista que é Jacinto Rego de Almeida (outro que não foi dos “insignes ficantes” a que se referia Jorge de Sena) viesse ainda a dedicar um livro a algumas das muitas e engraçadas “histórias da coberta”, que sempre foram sendo propaladas pela inesgotável “voz da abita” e às quais os Anais do Clube Militar Naval (vide Junça e companhia) deram acolhimento durante muito tempo.
Com maior afinação das suas cordas de sensibilidade (marinheira e humana), citaremos ainda os Pedaços da Minha Vida com que nos brindou o Comandante Oliveira Costa (Ó Costa para os amigos) e, numas divagações mais telúricas e continentais, a selecta póstuma de textos de Ferreira Júnior Terra-Mar-E-Guerra (Cogitações de um Marinheiro Alentejano) ou os volumes Caminhando… saboreando e o recente E não só… de António Oliveira Bento. Porém, verdadeiramente surpreendente é o livro Enquanto me lembro há um ano publicado por José Guerreiro – aliás Júlio José Guerreiro das Chagas Torre – o qual, além do mais, nos dá de borla uma lição de como se devia escrever em bom português.
Eis, pois, esta minha crónica de hoje, “mansa como um conto de Natal”, como já alguém escreveu dever ser.


JF / 12.Dez.2017

1 comentário:

  1. Todos os teus textos são de grande interesse, mas esta crónica "mansa" e com cheiro a maresia, escrita quando se celebram os 700 anos da Marinha, foi-me particularmente agradável. Afinal, temos muitos amigos que são escritores. Gostei. Muito obrigado!

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