sexta-feira, 28 de abril de 2017

Entre Abril e Maio

No termo das ansiedades pelos resultados eleitorais franceses e em plenas rotinas comemorativas das memórias abrilistas e “primeiro-maioistas” de uma parte dos portugueses, soube bem ler vários dos textos de opinião publicados na imprensa. O equilíbrio, a lucidez e a racionalidade estiveram presentes nas páginas do Diário de Notícias de 26 de Abril e, muito particularmente, na edição do Público do mesmo dia, colocando-se a contrario das críticas de abaixamento geral da qualidade que eu próprio havia julgado detectar há algum tempo atrás.
Manuel Carvalho, em «Confortáveis na placidez de Abril», dá perfeitamente conta deste sentimento, ao não calar nenhuma das nossas insuficiências estruturais – da política à economia ou às atitudes sociais – e, ao mesmo tempo, ao assinalar o contraste com as exacerbações e receios que pululam à nossa volta. Sim, esta “placidez” compara com o comportamento daqueles que se eximem de exprimir a sua opinião política (dado que todos temos uma, seja ela qual for) porque, no fundo, estão confiantes no funcionamento “do sistema”; com ou sem a sua participação, sabem como conduzir-se e planear a perseguição dos seus objectivos próprios ou a defesa dos seus interesses mais directos – como Roma dormia descansada quando os seus centuriões velavam pela guarda das províncias do império.
Porém – porém!... –, vale a pena não esquecer três coisas: é muitas vezes em plena paz de auto-contemplação que rebentam borrascas que a todos apanham desprevenidos. Optimismo não falta aos actuais porta-vozes governamentais e de Belém não cessam as mensagens de reforço da auto-estima nacional, mas o turismo (que tanta animação trouxe aos centros das nossas principais cidades) é uma flor frágil que se quebra ou seca com facilidade e as empresas tecnológicas e exportadoras com que procuramos relançar a nossa base produtiva estão sujeitas às mais instáveis condições de financiamento e endividamento externo – não esquecendo o lastro pesadíssimo das nossas classes pobres, que sofrem directamente essa condição e se constituem como assistidos perpétuos do Estado-providência (sem que todavia este constitua aliciante bastante para atrair maciçamente outros dos mais desgraçados do planeta, que tentam nos países ricos da Europa ou nos Estados Unidos a fuga à sua precária ou miserável situação). Em segundo lugar, suspeita-se que muito da actual aparência de consenso em torno do nosso Estado-social-de-direito-democrático possa ser meramente conjuntural e também ilusória: a auto-congratulação dos sobreviventes do “abrilismo” pode mostrar um genuino afecto e superação das clivagens passadas, mas mantêm-se os sinais e a memória da incompatibilidade absoluta entre os adeptos de um Estado-Leviatã de essência ditatorial, ainda que compreensivo e temperado nas suas concretizações (além disso, congregador de inúmeras boas-vontades e justificações sociais) e, por outro lado, aqueles que não cedem nos valores da liberdade e na procura de justiça, ainda que tais desígnios tenham de ser condicionados e sujeitos ao escrutínio do princípio-da-realidade e das condições históricas existentes. (Ontem, este enfrentamento punha-se em relação ao conflito Leste-Oeste, ainda que este fosse perturbado e desfocado pelos interesses próprios de alguns poderes dominantes; hoje, ele pôr-se-á perante novos confrontos civilizacionais, com desafios tecnológicos e económicos ainda mal percebidos e modos de acção política completamente fora do quadro de normas, valores e referências a que os últimos dois ou três séculos nos haviam habituado). E em terceiro lugar importa não esquecer que o “país político” é ainda (ou já) uma minoria da população residente: de facto, a maioria situa-se “à margem” dos problemas que afectam a nossa sociedade (ainda que por desfastio compareça nas assembleias de voto), seja porque as pessoas se fixam quase exclusivamente no âmbito inter-individual onde podem pesar e ser reconhecidas, seja porque se encontram desimplicadas, social ou culturalmente.
Igualmente interessante (embora muito mais focada e especializada) é a perspectiva que nos é dada na mesma edição daquele jornal por um texto de João Moreira Rato intitulado «A importância de criar uma dinâmica positiva para a dívida».Tratando-se, sem dúvida, de uma das dificuldades estruturais que pesam sobre a sociedade portuguesa, tal questão investe simultaneamente o papel e a performance do Estado (insuficiente para uns, excessivo para outros, mas sempre tradicionalmente deficiente) e os termos da nossa relação com o exterior, hoje absolutamente determinante para a satisfação da população e sustentação do seu futuro. 
O artigo «As estatísticas oficiais e a nova ciência de dados», do professor Pedro Simões Coelho (da Universidade Nova de Lisboa), alerta-nos de maneira muito judiciosa para os problemas que estão a ocorrer nesta área. Escreve ele que «os métodos tradicionais que suportavam as operações estatísticas (largamente baseadas em inquéritos) apresentam limitações crescentes que se prendem com as cada vez maiores taxas de não-resposta a inquéritos, com a necessidade de aliviar o esforço que é exigido a cidadãos e empresas ao participar nestas operações, com a falta de flexibilidade das mesmas, com os elevados custos que estas acarretam». Pessoalmente, como sociólogo, já há anos eu pressentira estas dificuldades. Agora, quando no espaço público se discute fundamentalmente com base em dados estatísticos e em sondagens de previsão (altamente susceptíveis a “manipulações”, precisamente por causa da sua aparente objectividade), o problema é ainda mais relevante, afirmando este autor que urge «uma dramática alteração na produção estatística, que envolve todas as etapas do processo, desde a recolha de dados até à disseminação da informação», apostando ele numa maior utilização de dados administrativos e em outras técnicas derivadas da informatização que a todos nos constrange.
Paulo Ferrero (do Forum Cidadania Lx), assina um texto acerca da coerência urbana ameaçada no caso de um novo plano municipal em zona histórica da capital – «Ainda e de novo a Praça-Mesquita da Mouraria» – onde, com fundamento, se insurge contra aqueles que querem desfigurar uma «cidade consolidada, uma cidade que […] não precisa nem de recriações nem de rasgos de autor ou de rasgões que o firam para sempre».
Vale ainda a pena encarar com espírito de análise crítica a sinópse que o mesmo jornal fez (a páginas 24) dos programas eleitorais com que Emmanuel Macron e Marine Le Pen se vão apresentar à 2ª volta das eleições para a presidência da república de França. Ao olhar para tais programas prometidos, o cidadão comum poderá ver principalmente diferenças quantitativas para o próximo quinquénio: Le Pen promete taxar certas empresas e importações para se “consumir mais francês”, reduzir em 10% os três escalões mais baixos do IRS, limitar a 10 mil por ano o número de novos imigrantes, contratar 15 mil polícias e construir prisões para mais 40 mil reclusos; Macron anuncia 50 mil milhões de Euros de investimento público, poupanças de 60 mil milhões na despesa do Estado, reduzir o número de alunos por turma e estimular materialmente os professores, aumentar o orçamento da defesa para 2% do PIB, contratar mais 10 mil polícias e criar 15 mil novas vagas nas prisões. Evidencia-se que ambos vão actuar sobre a segurança e sobre o reforço dos controlos fronteiriços. Mas é sobre a orientação política de cada um destes candidatos que se joga efectivamente o destino a curto prazo da França e da Europa. Entre o explicitado e o não-dito, percebe-se que a União Europeia e a preservação do eixo Paris-Berlim estão no âmago da proposta de Macron (outra coisa será ver em que condições partidárias e internacionais ela poderá ser passada à prática), enquanto a dessolidarização em relação à UE, o proteccionismo e as ambiguidades relativamente à futura política externa francesa (NATO, Rússia, EUA, francofonia, etc.) marcam decisivamente o discurso da senhora Le Pen. Já se adivinha quem será o vencedor desta contenda, ainda que a indicação pró-abstenção do esquerdista e “soberanista” Mélanchon venha a causar amargos de boca a muita gente. Mas, para além das insuperáveis dificuldades que o regime constitucional e o panorama partidário francês venham a criar após as eleições legislativas de Junho, é de realçar o posicionamento centrista e social-liberal do candidato moderado – talvez a única posição racional no meio da esquizofrenia geral que parece atingir aquele país –, bem como a ruptura realista da sua proposta de reduzir em um terço o número de deputados e senadores, e limitar a um máximo de três o número de mandatos eleitorais. Pode parecer pouco mas, para quem conhece a cultura política francesa, será certamente interpretado como um passo na boa direcção para a regeneração dos anquilosados processos que, em geral, estão atingindo todos os regimes democráticos nesta época de globalização.        
Finalizando, em tom de polémica, refiro o programa passado no mesmo dia 26 na RDP1 «O Amor É», com Júlio Machado Vez e Inês Maria Menezes. O tema do dia prendia-se com a repressão sofrida por um homossexual em país de cultura islâmica. Naturalmente, seria de verberar tal procedimento, mas daí a aproveitar a deixa para mais uma acção de propaganda desta “causa fracturante” vai um enorme passo. Em geral, foram as Esquerdas dos países mais ricos que, à falta de operários para mobilizar contra o patronato, enveredaram pela exploração dos direitos ditos de terceira geração, sem se preocuparem com o facto de estes nada dizerem ou mesmo ofenderem os sentimentos da grande maioria das populações do globo, na América Latina, na Ásia e na África, com culturas, religiões e modos de vida bem distintos. Julgo que a “máxima universalização possível” foi atingida com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, na conjuntura especial do pós-guerra que então se vivia. Em tal documento se proclama a inviolabilidade da vida humana, a igualdade civil, o direito a uma pátria nacional, à liberdade de pensamento e expressão, de movimentação, também de religião e de constituição de sindicatos e várias outras garantias que os instituintes acharam que deviam fazer parte do património comum da humanidade. Sabemos como mesmo esta carta de direitos fundamentais encontra ainda hoje dificuldades para ser razoavelmente observada. Por isso, Machado Vaz poderá defender as ideias que quiser (ainda que fossem fascistas ou bolchevistas, embora estas últimas há tempo que circulam com rédea livre) mas faria melhor em prescindir do qualificativo de Professor com que é publicamente apresentado. Ou acha que é incontestavelmente a Ciência que dita as suas tomadas de posição?

JF / 28.Abr.2017

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