Está a encerrar mais uma temporada de Verão, que
igualmente significa do tormento dos incêndios florestais. Desta vez com o mais
pesado balanço de que há memória recente, com os 64 mortos registados em
Pedrógão Grande ainda antes do início oficial da temporada e a maior área florestal
alguma vez ardida em Portugal num só ano (mais de 230 mil hectares).
Como se compreende, aquele incêndio de Junho
impressionou o país e gerou uma interessante onda de solidariedade mas, como
era inevitável, a seguir veio a exigência do apuramento de responsabilidades e
a querela política, apesar do quadro eleitoral autárquico não ser o mais
propício para tal. Por esta razão e pela própria complexidade do fenómeno, o
debate público rapidamente resvalou para as subtilezas das razões técnicas e
jurídicas já fora do alcance da compreensão das pessoas comuns, que
continuaram a elocubrar em termos como:
“isso é o interesse dos madeireiros”, “são os corporativismos em choque uns com
os outros”, “eles não vão parar com os eucaliptos”, “os políticos são todos iguais”,
etc. – percepções que não andam longe da verdade mas que são claramente
insuficientes para um esforço de análise dos problemas e a definição de pistas
para a sua resolução, sobretudo para o futuro a médio prazo. Neste sentido,
entre tantos outros, realço o artigo do economista universitário Raul Lopes
saído no jornal Público de
18.Jul.2017 ou a opinião expressa no
mesmo jornal a 7 de Agosto pelo não-especialista António Neto, cidadão atento e
bem informado.
Já em Setembro do ano passado aqui tínhamos colocado
um texto reclamando uma revisão profunda da política florestal e do regime de
plantação existente – que imporia limitações ao direito de propriedade – e no
Outono manifestámos algumas expectativas favoráveis ao pacote legislativo então
apresentado pelo ministro Capoulas Santos. Agora, tudo foi de novo posto em
discussão: não apenas aquelas questões, mas também a eficácia do Serviço
Nacional de Protecção Civil, o SIRESP – “sistema-de-informação” de emergência
que deveria integrar todos os dispositivos de segurança existentes no país (e
note-se que aquela expressão significa um “complexo informático” só produzido
por grandes empresas do ramo, neste caso bem conhecidas por boas e más razões)
–, a competência e o grau de especialização dos bombeiros, a utilização dos
meios aéreos, o desempenho da GNR e do “115”, a melhor adequação das espécies
arbóreas às actuais condições climáticas e às características do nosso espaço
rural, o papel dos meios de comunicação social, etc. Esperamos (quiçá
ingenuamente) que, para além das diatribes partidárias e parlamentares, um
razoável consenso possa ser alcançado quanto à orientação dos poderes públicos
nos próximos anos, sem que cada governo se empenhe sobretudo em destruir o que
o antecessor realizou, mas procure apenas melhorá-lo. Houve, porém, duas
matérias que aparentemente ficaram fora da discussão: o problema do povoamento
disperso em grande parte dos nossos espaços rurais e o significado (para nós,
portugueses) da eficaz intervenção de grupos especializados de bombeiros
espanhóis que acorreram com viaturas da Galiza, Estremadura, Madrid e Andaluzia
para combater os incêndios de Pedrógão, Figueiró e Góis. Sobre isto me quero também
manifestar.
Como fenómeno que é, em parte, global (devido ao
aquecimento atmosférico) e internacional-regional (pelas semelhantes condições
e continuidades da floresta mediterrânica), é normal e salutar que haja
cooperação de vários países em meios de ataque a incêndios quando estes atingem
proporções catastróficas, como foi o caso. Mas se o empréstimo de
aviões-cisterna pesados já é habitual, não o é tanto a deslocação de viaturas e
bombeiros-sapadores especializados (militares?) espanhóis que, pelo que se viu,
tiveram uma intervenção decisiva para reduzir e finalmente extinguir as chamas
que persistentemente lavravam no concelho de Góis, sobretudo. Fizeram-no
discretamente, sem “espectáculo” e com grande eficácia, fugindo à
“mediatização” como sempre deveria ser; e foram-se embora sem “honras” nem
fanfarras, que o sul da Andaluzia estava prestes a requerer também os seus
serviços. Sem qualquer laivo de “patrioteirismo”, não poucos se terão sentido
envergonhados com esta prestação solidária, perante as manifestações de
impotência e desespero que pudemos observar em tantos nacionais. Gracias, a nuestros hermanos! (que os
seus dirigentes não deixarão de recordar aos nossos na primeira oportunidade
que se lhes deparar, para daí tirar vantagem.)
Recordaria agora que, nesse anterior escrito, se afirmava
que «o direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança
contra o fogo, seja em termos do regime de florestação […] seja em termos de
limpeza e manutenção […]. Todos os terrenos abandonados devem reverter sem
demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por
prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão […]
deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta
actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários
a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as
melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental».
É possível também que a anunciada “bolsa de terras”
possa vir a integrar a cedência graciosa, pelos proprietários, de matos e mesmo
do direito de replantação de “árvores bombeiras” nas suas terras abandonadas por
essas mesmas empresas concessionárias (talvez por prazo de 20 a 30 anos), que
disso tirariam rendimento, no quadro de planos de ocupação arbo-agro-pastorial
dos solos gizados por equipas de técnicos competentes.
Com envolvimento dos municípios, competiria sobretudo
ao Estado o cadastro dos solos, a definição legal das condições de plantação e
exploração e das normas de segurança para as habitações rurais, o concurso para
as empresas concessionárias (não em PPP, mas sim em concorrência entre si no
âmbito de áreas geográficas alargadas), a vigilância e coordenação do ataque
aos incêndios (com meios próprios e do voluntariado) e a fiscalização do
cumprimento de todos estes preceitos.
Dantes, as tropas apeadas ou montadas (por “vocação”)
e os oficiais de estado-maior (por necessidade) conheciam muito bem o
território nacional, sobretudo o mais acidentado, por ser menor a intensidade
tecnológica do seu armamento e o terreno constituir, nesse caso, um elemento
fundamental de sucesso ou de derrota. Hoje, são os autarcas quem melhor o
domina, porém com a abissal diferença da sua fragmentação (quase sempre de
costas voltadas para os concelhos vizinhos). A visão integrada do nosso espaço
rural, com a acentuada diversidade que contém, exige agora que uma nova lógica
de interesse público presida às grandes orientações estratégicas (actividade
económica, propriedade fundiária, povoamento, meios de comunicação, preservação
ambiental, segurança pública, protecção civil, etc.) e, seguidamente, à (re)construção
de estruturas e processos organizacionais e à selecção do respectivo pessoal
especializado (sobretudo ao nível dos principais decisores), bem como a uma
adequada informação às populações.
Obviamente, a questão do povoamento está estreitamente articulada com o regime de
propriedade de minifúndio que domina o centro e norte do país (mais o Algarve)
e, além disso, com ainda outras variáveis como sejam o valor económico das
plantações, a eficácia das redes viárias e de telecomunicações
electrónicas, a responsabilidade
camarária pelo licenciamento de novas construções de habitação (e reabilitação
das mais antigas), as características demográficas da população ainda aí
residente e o seu apego a manifestações simbólicas ou culturais muito
compreensíveis (ermidas, lavadouros, festas, cafés, etc.), por serem
estruturantes da sua identidade social.
Porém,
se naquela região do “pinhal interior” ainda subsistem algumas aldeias ou
lugares com uma dimensão, população e identidade mínimas – que precisam de ser
protegidas contra estes riscos com melhores acessibilidades, comunicações e
proximidade de apoios de todo o tipo (bombeiros, segurança policial, emergência
médica, correio, etc.) – basta andar cinquenta quilómetros mais para o litoral
para que a paisagem humana se modifique inteiramente, com casas e casais
isolados e dispersos pela natureza, que sempre se tornará impossível proteger
em termos equivalentes, tal como, de resto, certas povoações de montanha onde
sobrevivem miseravelmente alguns poucos milhares de rurais idosos. São três
tipos de povoamentos distintos, a que a sociedade e o Estado terão de responder
com soluções diferenciadas, a saber:
a)
nas aldeias viáveis, assegurar as referidas condições de segurança e plena
interligação com o tecido social mais próximo, sem contudo desperdiçar qualquer
oportunidade para uma concentração populacional mais eficiente nas vilas e
cidades vizinhas, que apresentam outras e melhores condições de vida, de
dinamização económica e enriquecimento cultural;
b) no povoamento individual-familiar disperso, de
pessoas com razoáveis ou bons meios de subsistência (incluindo as numerosas
habitações secundárias), consciencializá-las da obrigação que têm de (custear
e) cuidar da sua própria segurança ao quererem preservar esse seu isolamento e
individualidade, recusando-se também os municípios a licenciar a construção de
novas habitações em semelhantes condições; c) finalmente, no terceiro caso, é
indeclinável dever da sociedade arcar com a responsabilidade e os custos dessas
situações de isolamento de pessoas sem recursos próprios, incentivando a sua
deslocação para a vila mais próxima e tratando-as, em todas as circunstâncias,
como “casos sociais” que realmente são (geralmente vivendo da horta, da
capoeira e de um subsídio público), fornecendo-lhes, no mínimo, meios de alerta
e socorro de emergência, de simplicidade e eficácia comprovadas.
Da mesma forma que a floresta, a agricultura e a
pecuária precisam de ser empresarializadas, já não sendo sustentáveis por mais
do que uma geração as micro-explorações familiares tradicionais de parcelas
pequenas e dispersas, trabalhadas com equipamento rudimentar. Empresarializado
já o está, em parte, o sector vinícola e o olival (este, sobretudo no Alentejo,
graças ao impulso espanhol), a pecuária intensiva (muitas vezes em degradantes
condições de acondicionamento dos animais) e a produção industrial de rações. A
isto se pode juntar a fruticultura do Oeste (cooperativizada) e o pequeno nicho
associado na AgroBio. Aqui se têm registado os mais acentuados progressos na
última década-e-meia. Mas a maior parte da área agricultável e de pastorícia
terá de sofrer restrições e estímulos especiais para que não persistam as
terras incultas e para que os pequenos-e-médios proprietários sejam melhor
formados, devidamente equipados e descubram as vantagens do associativismo
cooperativo na especialização das produções, no uso da maquinaria agrícola apropriada,
nas colheitas e aprovisionamento dos mercados, na contratação de frescos com as
“grande superfícies” comerciais, nos processamentos industriais e na
exportação. As “denominações de origem” de vários produtos oriundos da pequena
empresa familiar são tão um bom instrumento de progresso, certificação da sua
qualidade e sustentação a mais longo prazo.
Há cinquenta anos, a “reforma agrária” foi um projecto
nacional falhado, pela sua instrumentalização partidária e desadequação
histórica – como ainda há pouco relembrou na televisão António Barreto. Mas o
país continua à espera de uma reestruturação fundiária que viabilize a
agricultura moderna de que se carece sem contudo, desajeitadamente, destruir os
últimos traços de cultura camponesa que ainda dão sentido à ocupação que
fazemos deste território.
JF / 21.Set.2017
Sem comentários:
Enviar um comentário