As universidades são instituições antigas, com
vários séculos de história ao longo dos quais se registaram consideráveis
alterações nos objectivos perseguidos e modos de os atingir. Durante muito
tempo, elas ensinavam com mais elevada sofisticação argumentativa os credos
religiosos dominantes nas respectivas sociedades, e algumas ainda hoje o fazem.
Mas, a par disso e da discussão especulativa das leis que deviam reger a
conduta os Homens, também se empenharam em estudar e explicar os fenómenos
naturais observáveis na natureza envolvente. Assim, desde logo se cavaram
diferenciações profundas entre meia dúzia de ramos do saber, cada um deles
capaz de elaborar e justificar as suas próprias metodologias de pensar: a teologia, consolidando o património
legado pelos “doutores da Igreja” (Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino) mas
bastante imbricada com a base filosófica legada pelo antigos Gregos; a literatura (poética, teatro, epopeia); as leis e a retórica, muito ao serviço
dos poderes político-sociais dominantes (e criando uma incrível densidade de
regras formais que marcaram a época medieval); a matemática, ligada à astronomia e à representação da Terra por um
lado, e à física e às edificações por outro; a cartografia geográfica e a navegação; a medicina; e as ciências
naturais (em particular a zoologia e a botânica).
Com a revolução cultural renascentista (a que não
foi alheio o estilhaçamento da unicidade do cristianismo de Roma), a
universidade começou a projectar os seus braços, formando Colégios especializados
em novos ramos da ciência, a saber: a biologia,
explorando os mecanismos mais íntimos e não visíveis da vida, com efeitos na
medicina e no aprofundamento do conhecimento do mundo animal e vegetal; a geologia e a história da terra (com
ligação aos antecedentes); a física
(mecânica, óptica, magnetismo, termodinâmica, etc., conhecimentos que tornaram
possível a “revolução industrial”); a química
(com desenvolvimento um pouco posterior mas irresistível, permitindo penetrar
onde a física já não chegava e com aplicações directas na indústria); a história (puxada da lenda e da crónica
para a esfera do saber investigativo); e a economia
(despegando-se da filosofia e do direito, e explorando os métodos de cálculo
matemático). Em contrapartida, a literatura saiu a pouco e pouco da alçada
académica para o espaço civil da criação artística, autonomizando-se com o
romance, a novela, o jornalismo e o panfletarismo. E as “artes da guerra”
mantiveram-se sempre à margem destas instituições, constituindo a sua própria escola
de pensamento e de formação dos seus quadros, um pouco como os conventos e
seminários haviam congelado a disciplina, os saberes e os rituais do
cristianismo.
No século XVIII, as “luzes” do racionalismo abriram
novas portas ao conhecimento, crença em que acreditavam firmemente os
enciclopedistas. A educação e a pedagogia erigiram-se então em matérias
importantes leccionadas em instituições especializadas, que deveriam orientar
os futuros profissionais da escola
pública, complementando e substituindo em boa medida o papel das famílias e
das comunidades de base de residência ou pertença. Preparava-se o processo da
“reforma social” da Modernidade e, sob este enfoque, a metamorfose do
Estado-nação.
Por outro lado, paralelamente às Universidades, as
Academias contribuíram poderosamente para a sistematização dos saberes: o método passou a dominar e organizar os
resultados da investigação, da experimentação, da reflexão e da própria
criação. Academias das Ciências, das Belas-Artes e das Belas-Letras, da História,
de Música, etc., surgiram em vários cantos da Europa, relegando doravante para
um passado tornado imóvel os saberes recitados da escola corânica ou dos
santuários budistas. Obviamente, estas Academias beneficiavam dos favores dos
poderes régios, mas estes acarinhavam sobretudo os arquitectos e os músicos,
que lhes asseguravam a glorificação, e também os “físicos” (que lhes tratavam
da saúde) e os confessores da Igreja, a bem de um eterno descanso. Mas o
“método científico”, baseado na possibilidade de repetição da prova, entrou na
sua idade adulta. E a Indústria – e já não o empório comercial ou os complexos e
dificilmente transmissíveis saberes agrários – veio para, progressivamente,
reorganizar toda a vida económica dos povos, alterar a estrutura social e as
próprias sociabilidades e entendimentos colectivos. Não trouxe consigo apenas o
Progresso e alguma forma de Liberdade; trouxe também uma enorme multiplicação
da potência destruidora (ou constrangedora) das Armas, alterando a configuração
da batalha e das guerras, mexendo com a diplomacia, redefinindo Nações e
Impérios. Num plano mais conceptual, nascia também a geopolítica, caída em
desgraça no século seguinte (Yves Lacoste: “la
géographie sert avant tout à faire la guerre”). Porém, além das matérias-primas
e dos novos mercados, a “segunda globalização” (colonial, oitocentista) atacou
a espiritualidade animista ou panteísta de negros africanos e nativos
americanos, atribuindo-se a humanitária missão de trazer esses povos para a
nossa civilização e para a Modernidade – o que, parecendo impossível, afinal
foi feito ao cabo de quatro ou cinco gerações, embora produzindo contradições e
dilaceramentos internos que hoje se nos mostram mais visíveis.
Nesse século XIX – que viu também a economia e o
direito começarem a organizar a vida internacional em bases mais racionais, com
as convenções, as patentes e a estandardização –, a Universidade vai tomando as
formas que ainda hoje lhe reconhecemos: faculdades e institutos donos de
“disciplinas científicas” consolidadas; formalização de procedimentos (cátedras
e cadeiras, exames, concursos, bibliotecas, laboratórios, rotinas
administrativas, rituais académicos, fontes de financiamento); cada vez maior
subdivisão dos saberes, organizados em especialidades; e nascimento das
“ciências humanas” (com a antropologia, a sociologia, a demografia, a
psicologia, mais tarde a psicanálise); penetração quase geral do uso de
técnicas de medição estatística, tendendo a dar àqueles últimas um aspecto mais
objectivo – tudo isto favorecido e legitimado por uma visão filosófica
positivista, que congelava definitivamente os “estados teológico e metafísico”
do pensamento humano. Mas, é por estas épocas que a articulação entre a ciência
e as técnicas se torna mais evidente, directa e impactante sobre a sociedade e
o meio natural. A química e a física (sobretudo com o domínio dos materiais
metálicos, os maquinismos e, depois, com a electricidade) tornam-se factores
quase imediatamente produtivos; são eles que permitem (ou exigem) o
desabrochamento das engenharias como
disciplinas e saberes de intermediação entre a investigação fundamental e as
aplicações úteis, com valor económico.
No dealbar do século XX, a física alarga o seu
espectro com a descoberta da composição íntima da matéria, o estudo das
radiações, enfim, a física atómica. A electricidade, o magnetismo e as
radiações suportam o desenvolvimento da electrónica, com a exploração do
espectro radioeléctrico e a multiplicação e especialização de equipamentos.
Aqui, o décalage temporal entre
descobertas científicas e artefactos fabricados com base nelas reduz-se talvez
a 30 ou 40 anos (a telegrafia sem
fios, a radiologia, o incrível poder destruidor da “bomba atómica”, etc.). E a
instituição universitária – agora no Ocidente já totalmente liberta das peias
religiosas – acantona-se durante algum tempo numa estruturação interna
implícita em torno de duas grandes áreas: as “ciências” (exactas, experimentais
e comprováveis, incluindo as físico-químicas, as engenharias, a medicina e a
farmácia, ou ainda as chamadas ciências naturais), por um lado; e por outro as
“humanidades”, onde cabiam a história, a filosofia, o estudo das línguas, das
literaturas e das culturas, a sociologia e (um pouco forçadamente, mas por
razões diferentes) a geografia e o direito. A escola primária continuava a ter
como missão o ensinar a ler, escrever e contar. Mas as matérias elementares do
ensino secundário que abriam os caminhos para aquelas duas fileiras eram, no
primeiro caso, as matemáticas e as ciências físico-químicas; e, no segundo,
geralmente o latim, a filosofia e a história. Não por acaso, os prestigiados
prémios criado por Alfred Nobel incidiram sobre a Física, a Química e a
Medicina e Biologia, sendo o da Literatura e o da Paz correspondentes a outras
motivações daquela época.
A indústria, os meios de transporte e comunicação,
os laboratórios dos cientistas e os gabinetes governamentais criaram então as
condições de crescimento de uma economia capitalista que se tornou imparável,
até aos nossos dias. Esta, por sua vez, modificou profundamente as estruturas
internas das sociedades e afectou as relações internacionais com efeitos nunca
antes imaginados (guerras, tratados, organizações inter-estatais). E esta
economia, as indústrias pesadas e extractivas, e os progressos constantes da
ocupação urbana ajudaram a configurar um novo desafio: o de fazer face aos
nefastos efeitos ambientais, com a emergência de algum novo cepticismo quanto
aos benefícios do Progresso em franjas minoritárias mais sensíveis das opiniões
públicas.
Depois do processo de descolonização, do alarme
causado pelo “risco nuclear” e na vigência de um quadro de áspera competição
entre duas “super-potências” (americana e russo-“soviética”), a ciência e as instituições
universitárias tornaram-se verdadeiramente matéria
de interesse estatal: assegurando-lhes financiamento e encomendas,
sugerindo-lhes orientações de pesquisa, estimulando a aproximação
universidade-empresas, enquadrando a “vontade de saber” de populações de jovens
cada vez mais vastas e preparando as futuras classes dirigentes – sempre com um
olho na competição internacional, agora escrutinada com indicadores, rankings e estatísticas muito
elaboradas. Neste contexto, a área dos estudos económicos desenvolveu-se
notavelmente (acabando também por suscitar um outro Prémio Nobel) e sobretudo
originou um novo filão de formação e carreiras profissionais que, de alguma
maneira, são típicas do século XX e se prolongam na actualidade: referimo-nos
aos gestores, uma qualificação
aprendida com o contributo de várias matérias (economia, estatística, direito,
psicologia e outras mais específicas) cujos titulares tendem a ocupar os
lugares profissionais intermédios das médias/grandes organizações produtivas
(fabricantes, prestadoras de serviços, vendedoras, etc.) e de entre os quais se
recrutarão as próximas elites dirigentes.
Entretanto, acossadas por uma onda de credibilização
que só a auréola de cientificidade parecia poder dar, as “humanidades” não
descansaram enquanto não se sujeitaram a critérios de validação semelhantes aos
das suas primas “nomotéticas”, assumindo-se no areópago académico como
“ciências sociais e humanas”, também vulgarmente tratadas por “ciências moles”
para se distinguirem daquelas, ditas “duras”. E, mais recentemente, até as
disciplinas artísticas – da música ao teatro ou às belas-artes –, e mesmo as
ciências-e-artes da guerra, não resistiram ao apelo de se abrigarem sob a tenda
da universidade e de os seus estudantes se representarem com o “manto diáfano”
das capas negras – sendo esse também o grande desígnio que alimenta as
aspirações das escolas técnicas de nível superior.
Mas, assim como a geografia proporcionou que tal
objecto de estudo permitisse abordagens multi-disciplinares (geografia física e
geografia humana, para começar), também o desenvolvimento do conhecimento
científico tem evidenciado numerosos conflitos quanto à jurisdição de que se
arrogam certas disciplinas (ou áreas de conhecimento), decerto com teorias
explicativas e métodos de análise originais, mas cada qual pretendendo possuir
potencialidades heurísticas superiores… quando muitas vezes tais argumentos
cobrem apenas interesses particulares dos seus praticantes (disputa de melhores
recursos materiais ou humanos, dos favores dos financiadores, de prestígio
próprio e outras compreensíveis fraquezas humanas). Mas noutros casos é o
desenvolvimento interno de certos paradigmas teóricos ou metodologias de
análise que introduzem factores de crise ou definhamento da capacidade
explicativa de uns ramos destas ciências, em favor de outros. Por exemplo,
depois de uma fase de florescimento e indesmentível atractividade, a sociologia
contemporânea parece-me estar a sofrer dos avanços de disciplinas parcialmente
concorrentes como a psicologia social, a antropologia das sociedades complexas,
o ordenamento territorial, a história oral, a ciência política ou as relações
internacionais. E há ainda os efeitos das percepções sociais dos mais jovens
sobre as oportunidades futuras, que podem justificar a redução do interesse
pela história, os efeitos de moda das actividades artísticas/criativas ou as
fundadas expectativas em toda a fileira das “TIC”.
O desenvolvimento dos diversos saberes científicos
tem-se operado nas últimas décadas sem qualquer cimento de ligação entre eles.
A filosofia deixou de preencher esse papel, resumindo-se agora talvez a uma
“história da evolução do pensamento humano”. Nenhuma meta-teoria, nenhuma
epistemologia consistente subjaz às derivas próprias de cada ramo do
conhecimento, alguns dos quais cavalgam alegremente as fantásticas tecnologias
já disponíveis (ou deixam-se conduzir por elas). Talvez por isso, as religiões
parecem sobreviver e relançar-se, após dois séculos de exibição triunfante das
nossas racionalidades.
Novas problemáticas e núcleos de saberes se formam –
por exemplo, agora nas ciências da computação, na bioquímica ou na astrofísica
– com maior rapidez do que se esbatem ou superam as referidas disputas
interdisciplinares. Mas, acrescentando-se à missão permanente dos institutos
universitários de ciência – pesquisa,
codificação e difusão dos saberes –, nunca talvez como agora se esperou
tanto dos seus resultados para responder a questões colocadas pelo próprio
desenvolvimento da sociedade.
Na actualidade, para dirigir estas grandes organizações
que são geralmente as universidades, já não são necessários (nem talvez convenientes)
reitores cientistas ou humanistas como foi, por exemplo, Unamuno – que
corajosamente enfrentou em 1936 o nacionalismo espanhol mais estúpido e brutal.
Bastam bons administradores ou gestores, naturalmente provindo do meio docente
universitário mas que, em vez de prosseguirem o seu mister de investigar,
ensinar e publicar, disponham antes de competências próprias para bem gerirem
recursos diversos em ambientes complexos.
Além disso, hoje, num país como o nosso, as
universidades (e os politécnicos) constituem uma espécie de “serviço cívico”
para os jovens que almejam alçar-se a patamares de actividade profissional com
alguma respeitabilidade social, autonomia de decisão e rendimento económico
mais confortável. Eis uma expectativa porventura excessiva para uma instituição
que, aspirando à universalidade e ao máximo possível de liberdade para
investigar e criar/propor novos esquemas explicativos que dêem conta das
complexidades crescentes do mundo onde estamos inseridos, se vê ainda e sempre
limitada pelos recursos dos seus patrocinadores principais: os estados
nacionais em que se situam.
JF / 28.Dez.2016
Olá, gostei imenso e aprendi bastante pelo que dilvuguei junto de alun@s e colegas via facebook, espero não ter feito mal. Feliz Ano Novo!
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