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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Uma política nova e de cara lavada

Repito e confirmo as ideias que já há tempos declarei acerca deste assunto.
O sistema político é hoje o principal responsável pelos males de que padece a sociedade portuguesa, pois as condicionantes externas – muitíssimo fortes, como sabemos – são dados que temos de ter em conta mas, no essencial, fora do alcance do que possamos fazer.
O nosso sistema político – regras e protagonistas – é irreformável a partir dos actuais partidos políticos. E a maior parte das formações que surgiram nos últimos anos não conseguiram convencer os cidadãos de que queriam fazer diferente, fosse pela trajectória anterior dos seus líderes, por não se demarcaram suficientemente do existente ou por não acautelarem os perigos da inexperiência e do “arrivismo”. Mas, do funcionamento democrático actual, muito há a preservar, sobretudo o clima de liberdade pessoal e colectiva, e também inúmeras pessoas sérias e de boa-vontade mas que são impotentes para “vencer a maré” dominante. Trata-se de conseguir uma reforma política – da lógica e da dinâmica do exercício da cidadania e do poder nacional –, não de o subverter ou substituir por algo incerto. As utopias manterão sempre o seu papel simbólico. Não as queiramos destruir tentando um arremedo coxo da sua concretização.
Em duas áreas deverá incidir esta reforma política: na emergência de um novo movimento (ou partido) saído da sociedade civil; e num plano de mudança constitucional e das principais leis que regem a nossa vida política.
Quanto ao primeiro ponto, enunciemos as fundamentais bases ideológicas e estatutárias que poderiam ter esse partido-movimento:
1-Absoluta conformidade de adesão aos princípios democráticos de liberdade, pluralismo, legalidade e transparência que guiam a nossa modernidade.
2-Rejeição de todos os regimes ditatoriais, autoritários e autocráticos, qualquer que seja a justificação doutrinária com que se apresentem.
3-Reconhecimento da soberania popular expressa em escrutínios válidos e, o mais possível, claros e inequívocos (o que, em boa parte, depende do quadro legal que os organiza). Porém, com um compromisso sério de não alimentar as tendências “eleitoralistas” que as campanhas sempre proporcionam.
4-Repúdio das formas de acção política violenta, seja armada, vanguardista ou de massas.
5-Reconhecimento doutrinário dos princípios da igualdade e dignidade humanas, da ideia de individualidade forjada pela época moderna, da supremacia do interesse colectivo sobre os interesses particulares, da mais justa distribuição e fruição dos bens económicos, sociais e culturais, e do respeito pela natureza de que fazemos parte.  
6-Assunção do vínculo sociocultural que nos liga à nação portuguesa, sem laivos de nacionalismo e estando abertos a futuros prudentes passos no processo histórico de identidade europeia, defendendo os seus valores fundamentais mas desejando a paz e um progresso justo para todos os povos do mundo.
7-Construção progressiva de uma estrutura de acção política saída da sociedade civil, inicialmente animada por pessoas de fora das “carreiras partidárias” mas sinceramente empenhadas em melhorar o destino colectivo da sociedade de que fazem parte.
8-Como compete a um partido das classes médias (nem populista, nem elitista), colocação “ao centro” do espectro partidário-ideológico, com reconhecimento e apreço pelos valores libertários e solidaristas geralmente reivindicados pelas esquerdas, mas igualmente pela prudência e moderação nos processos de mudança social que têm tido geralmente a assinatura das forças mais conservadoras – porém com clara rejeição das práticas políticas que uns e outros instituíram em Portugal das últimas quatro décadas, que acabaram por frustrar as melhores expectativas abertas pela revolução de 25 de Abril de 1974 e corromper o regime constitucional em vigor.
9-Recusa de qualquer aliança, coligação ou acordo negociado, pré ou pós-eleitoral, de governo ou de oposição, com os actuais partidos do espectro político nacional – independentemente de, com o seu voto, poder viabilizar ou chumbar um executivo ou uma qualquer medida legislativa, o que seria analisado caso a caso, conforme a situação concreta e o melhor interesse da colectividade.
10-No plano autárquico (e regional), disponibilidade para considerar a eventualidade de participação em órgãos executivos, se isso fosse de evidente interesse para as populações.
11-Concordância com o uso do referendo como modo de participação mais directa dos cidadãos na vida política, porém com muita ponderação e parcimónia, para que não se transforme em mais um campo de manipulação dos partidos.
12-Entre os pontos estatutários indeclináveis dessa nova formação “partidária” (aceitemos o ónus que hoje carrega esta designação) teriam de figurar os seguintes: a) a renúncia a todo o acréscimo em relação ao rendimento auferido anteriormente, por virtude da eleição ou nomeação para qualquer cargo público de pessoas sob a sua “etiqueta”, apenas com a manutenção dos direitos adquiridos (devendo aqueles remanescentes serem atribuídos ao sistema de segurança social); b) o compromisso de, enquanto representante eleito para qualquer assembleia deliberativa pública (parlamento, município, etc.), só votar contra propostas de terceiros em caso de discordância essencial e fundamentada (para a qual tivesse melhores alternativas), votando favoravelmente as medidas que parecessem ir no bom sentido e abstendo-se em todos os demais casos; c) recusa de, em momentos de discussão pública, fixar-se na crítica das promessas ou das razões (e ainda menos na pessoa) dos adversários, sem prejuízo do debate de ideias esclarecedor de terceiros, mas privilegiando sempre a explicação e fundamentação das propostas próprias; d) aceitação de medidas disciplinares rigorosas e rápidas contra quaisquer abusos de poder, tentativas de corrupção ou comportamentos delituosos por parte dos membros.
13-Prática exemplar de um funcionamento democrático e transparente, com formas de controlo dos representantes pelos membros de base, mandatos temporários e revogáveis em certas circunstâncias, definição clara de incompatibilidades e meios de financiamento verificáveis por qualquer cidadão, com os estatutos a regularem os modos de escrutínio para a designação dos responsáveis e a adopção das decisões e orientações programáticas, tendo em atenção os recursos actualmente disponibilizados pela ciência e pela tecnologia em matéria de conhecimento, informação e comunicação.
14-Promessa de, cinco ou seis anos depois da fundação, realizar um congresso (tipo “estados gerais”) de verificação do cumprimento do seu projecto motivador, com a possibilidade franca de dissolução do partido em caso de avaliação globalmente negativa.
Os principais riscos que sempre ameaçariam o surgimento de um movimento regenerador deste tipo seriam: a) a desconfiança da população perante o surgimento de mais um actor político; b) a deliberada assimilação desta iniciativa a movimentos populistas (com intuitos de descredibilização e confusionismo), que não deixaria de ser feita por alguns comentadores e pelos partidos instalados, sobretudo os de esquerda; c) a “invasão” por gente oportunista ou “submarinos” de outros partidos; d) a rápida consolidação de uma clique de dirigentes ou de um líder carismático que desviasse o movimento dos seus propósitos iniciais; e) a falta de experiência e “profissionalismo” dos seus representantes e dirigentes perante adversários políticos e especialistas dos mass media há muito rotinados nos papéis que desempenham; f) o “preço do sucesso”, após os primeiros resultados positivos e surpreendentes, em termos de opinião pública e eleitorado.

Quanto às mudanças das regras do sistema político e dada a motivação original para o lançamento deste movimento, será compreensível que, nesta fase inicial, as propostas preparadas pelo novo partido neste domínio constituíssem a parte principal do seu programa de acção, relegando para segunda prioridade as matérias de natureza económica e social, de política internacional, de segurança e defesa, de justiça, de educação e ciência, de protecção ambiental, etc. – as quais, naturalmente, teriam que ser mais ponderadamente estudadas, debatidas e adoptadas como “programa”, de forma participada e com o envolvimento de bons especialistas em cada uma destas áreas.
Eis então um conjunto de objectivos de reforma do actual sistema constitucional-legal que vem regulando a nossa vida política, por parte do novo partido-movimento:
1-Redução substancial do número de deputados da Assembleia da República, para cerca de 120/130, com regras de dedicação exclusiva e parcimónia das suas remunerações.
2-Alteração do dispositivo constitucional e legal da eleição e funcionamento da Assembleia da República e de formação do governo: a) numa primeira volta eleitoral, todos os lugares da AR ficariam preenchidos: pelo método proporcional, com um único círculo nacional para os partidos concorrentes (cerca de metade dos mandatos); e pelo método maioritário para a eleição dos restantes mandatos, em círculos geográficos uninominais abertos a independentes; b) numa segunda volta eleitoral, a que só acorreriam os dois partidos mais votados (caso o mais votado não fosse já maioritário na assembleia), apurar-se-ia o partido chamado a constituir o governo (que poderia, porventura, concluir depois acordos ou coligações com outros); c) salvo por demissão própria ou voto de moção de censura por maioria qualificada, o governo cumpriria a legislatura, tal como acontece nos regimes presidenciais; d) o orçamento e certas leis decisivas bem especificadas no programa eleitoral só poderiam ser “chumbados” na AR por maioria qualificada.
3-Acabaria a eleição do Presidente da República. Estas funções seriam desempenhadas, nos aspectos de promulgação das leis e protocolares, pelo Presidente da Assembleia da República.
4-O Tribunal Constitucional e o Conselho de Estado seriam extintos: a) o primeiro, na sua essencial função de verificação da constitucionalidade da legislação ordinária (que não como 4ª instância de recurso para certos crimes), seria substituído por uma secção especial do Supremo Tribunal de Justiça; b) em lugar do segundo, seria criado um Conselho da República, uma espécie de “conseil de sages” constituído por vinte a trinta personalidades, por inerência de altas funções anteriormente desempenhadas (no Estado, nas Magistraturas, Tribunal de Contas, Banco de Portugal, Conselho Económico e Social, Forças Armadas, etc.), por designação dos pares (pelas universidades, Comissão da Liberdade Religiosa, etc.) ou cooptados pelo próprio Conselho, em mandatos únicos de 5 anos, com o poder moderador de, eventualmente, fazer votar em segunda leitura certas leis da Assembleia da República e dirigir-lhe mensagens, bem como ao Governo ou ao país.  
5-Revisão do mapa, das competências e do modo de governação dos municípios, no sentido da sua simplificação, seguindo basicamente o modelo indicado para o governo.
6-Criação de um modelo de regionalização (no continente) de democracia delegada (a partir dos municípios) e não por eleição directa de novos órgãos de poder.
7-Abertura para a prática de algumas modalidades de democracia participativa já experimentadas (como o direito de iniciativa legislativa popular, o referendo, as “primárias” abertas, os orçamentos participativos, etc.), ou as possibilitadas pelas modernas tecnologias (consultas on line, voto electrónico, etc.), que estimulem o envolvimento e participação responsável dos cidadãos na resolução de problemas colectivos, mais do que a acção concertada de grupos de interesses ou de irmandades ideológicas.
8-Caducidade da legalização dos partidos sem representação parlamentar ao fim de duas ou três legislaturas e redução dos benefícios financeiros de que gozam todos os partidos.
9-Fixação de limites de mandatos sucessivos para todos os cargos públicos e períodos “de nojo” após o seu exercício, com responsabilização agravada em caso de certos crimes contra o interesse público.   
10-Inscrição constitucional de princípios de rigor orçamental e de responsabilidade pessoal dos decisores políticos em matéria económica e de prevenção da corrupção.
11-Garantia e reforço dos dispositivos da Justiça para a sua melhor eficácia e isenção, mas cuidando também da responsabilização dos magistrados face aos aliciamentos de que podem ser alvo.
12-Inspecção técnico-jurídica especial para enfrentar com eficácia as más-práticas e eventual criminalidade no sector financeiro. 
13-A redefinição de funções e áreas de actuação da PSP e da GNR, com melhor articulação com a Protecção Civil, as Forças Armadas e os serviços de informações.
14-Reavaliação realista da política de Defesa Nacional com mais plena consideração dos dados da posição geoestratégica do país, da política de alianças externas e dos condicionalismos económicos existentes, com provável redução do peso relativo das forças terrestres.
Neste campo – objectivado sobretudo por preocupações de simplificação e e rigor republicano na gestão da coisa pública, existem também riscos e problemas, de que enunciamos os principais: a) dificuldades na reaprendizagem da nova divisão de funções da Assembleia da República e do Governo: com oposição sistemática daquela sempre que a maioria não fosse favorável ao Governo; ou com menosprezo pelas oposições quando houvesse sintonia entre maioria e Governo; b) “chicana política” à volta da eleição parlamentar para a Presidência (também do Estado) e do desempenho desta função; c) acusações (interesseiras) de “ilegitimidade democrática” quando da aprovação do orçamento e de certas leis principais sem a maioria aritmética dos 50%+1; d) pressão dos partidos actuais, dos “grupos de opinião” e das “forças vivas” regionais para disporem de parlamentos e executivos eleitos directamente, com maior autonomia financeira, à semelhança do que acontece hoje nas Regiões Autónomas; e) incompreensão da natureza do papel moderador desta espécie de senado não-eleito.
Os interessados por uma solução política deste tipo têm uma missão óbvia a realizar: corrigi-la, completá-la, arranjar antídotos para os seus “pontos fracos” e pô-la em execução.

JF / 28.Jan.2016

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