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domingo, 23 de novembro de 2014

“Secções”, “células”, “grupos”

Como em qualquer associação livre, os indivíduos determinados em exercer um certo tipo de acção política colectiva organizam-se em estruturas elementares, mais ou menos formalizadas, geralmente locais; onde, em todo o caso, eles se possam encontrar regularmente e directamente discutir, confrontar opiniões e concertar actuações viradas para uma determinada intervenção na vida política. Houve um interessante tempo de “clubes”; e outros menos interessante de “tertúlias”, à falta de melhor.
Em sociedades abertas, tais estruturas elementares integram-se em geral – mas não necessariamente – em estruturas mais vastas e complexas, quase sempre de âmbito nacional. Mas o grau de autonomia própria de que gozam pode variar imenso, o que permite uma grande diversidade de funcionamento interno. É dessa variabilidade que aqui tratamos hoje.
Os partidos políticos organizam-se geralmente na base de “secções locais”. Este termo “secções” apareceu talvez em primeiro lugar durante a Revolução Francesa, na intensa efervescência que, durante os primeiros anos, agitou as classes populares parisienses, a par dos “clubes”, que eram cenáculos mais seleccionados onde se forjavam novas doutrinas, peroravam bons oradores e se discutia a “alta política”. Em contrapartida, as “secções” eram espaços mais abertos onde os citoyens se reuniam, bairro por bairro, para praticarem uma sorte de democracia directa, confusa, anárquica e igualitária, em que não se exigia qualquer credencial ideológica à entrada mas apenas a condição de residente e de “bom cidadão”, o que significava abjurar a Realeza e toda a panóplia dos “antigos direitos”, e de querer velar pelo salut publique e ajudar apaixonadamente a construção da República.        
Actualmente, as secções locais dos partidos são agremiações organizadas e geridas democraticamente, isto é, segundo a regra da maioria. Pelo voto maioritário dos filiados se escolhem os dirigentes da secção, para mandatos limitados no tempo, os quais se empregam durante esse período a despachar as tarefas burocráticas habituais de uma associação, a tentar responder à exigências vindas dos escalões superiores e às vezes a enfrentar questões que agitam os associados. Mas, frequentemente, as secções são locais desertos ou pouco frequentados até que cheguem as febris noites eleitorais ou algum plenário tempestuoso em que se tenta concluir sobre uma disputa interna ou se nomeia uma delegação que leve a um congresso ou a outra instância superior a posição da secção. Os debates são aqui pouco aprofundados, subordinados à lógica de, no final, se contarem os votos que apuram a deliberação maioritária. Os “vencedores” exultam; os “vencidos” aceitam desportivamente esse veredicto ou ficam a ruminar as causas ou as consequências da derrota, preparando já a desforra na oportunidade seguinte. O hábito destes encontros faz com que as pessoas se familiarizem um tanto umas com as outras, porém dentro de marcas de alguma distendida cortesia. Mas os choques de opinião ou comportamento, a veemência de alguns debates, também deixam muitas vezes ressentimentos duradouros ou “estimáveis inimizades”. O exercício de funções electivas e as eventuais manobras menos claras para as alcançar; ou a especial habilidade argumentativa ou carismática para convencer terceiros que uns pouco revelam, também desencadeiam frequentemente entre alguns associados reacções de inveja ou de despeito.
A entrada de um novo postulante para a secção é sempre feita através de uma formalidade burocrática: preenchimento de um formulário de candidatura ou de uma declaração, frequentemente “abonada” pela assinatura de dois membros já integrados e, sobretudo, o pagamento de uma “quota” em dinheiro. Este é talvez o gesto administrativo – e, no fundo, também simbólico – mais significante da adesão e da participação de alguém na vida colectiva da secção. Pode estar sempre calado nas reuniões, ou até nunca pôr lá os pés; desde que tenha “as quotas em dia”, é um cidadão em pleno gozo dos seus direitos estatutários! Deste modo, também o desligamento da secção se materializa geralmente quando, ao fim de algum tempo sem o indivíduo pagar a sua contribuição financeira nem dar notícias, os responsáveis acabam por tomar a inexorável decisão de o considerar “extinto” – a menos que a separação seja litigiosa, com processos de expulsão ou protestos públicos do recalcitrante, ou que o afastado seja aquele género de pessoa cuidadosa que não se esquece de enviar uma cartinha justificando a sua decisão, invocando razões mais ou menos “de circunstância”, o que só acontece a espaços.
Estas características da “secção” correspondem, no fundo, às de uma qualquer outra associação de pequena escala, agrupando geralmente não mais do que algumas dezenas ou poucas centenas de sócios, quer as mesmas persigam objectivos políticos, sociais, culturais, desportivos, recreativos, etc. As características micro-sociológicas e a psicologia destas relações inter-individuais sobrepõem-se aqui aos fins declarados que motivam a existência da colectividade. E a única diferença evidente com as “secções” locais é a de serem completamente independentes e senhoras exclusivas das suas orientações.
No caso da “célula”, as coisas passam-se já de modo substancialmente diferente. É aqui forçoso que a célula esteja integrada num organismo partidário ou conspirativo vasto, normalmente de âmbito nacional, que lhe dita as regras de funcionamento, os objectivos da acção política e os critérios gerais da táctica a usar com os partidos adversários ou para a captação de novos apoiantes. Deste modo, a célula raramente surge por iniciativa dos indivíduos agrupados mas sim por “decisão superior”. Neste quadro, a função do “controleiro” ganha toda a sua importância: é por sua proposta ou parecer que a célula é oficialmente criada por um qualquer organismo responsável de escalão superior; é através dele – nomeado por essa instância e não eleito pelos membros da célula, ainda que deles deva obter aquiescência ou pleno reconhecimento – que a célula recebe as informações e as instruções necessárias para o desenvolvimento da sua acção; é ele que elabora os relatórios da actividade da célula, alguns discutidos e aprovados colectivamente mas outros “secretos”, ou pelo menos potencialmente queixosos das insuficiências da célula ou do “mau comportamento” de algum dos seus elementos; finalmente, é exclusivamente ele quem, le cas échéant, propõe aos órgãos partidários competentes a dissolução da célula ou a expulsão de algum dos seus membros, réu de actos ou de pensamentos ideológicos contrários à linha do partido ou mesmo suspeito de ser um “inimigo infiltrado”.
É por estas razões que uma estrutura política deste tipo configura aquilo que, em teoria das organizações, pode ser descrito como uma organização hierárquica “top-down”, que funciona de cima para baixo, em que as informações devem afluir da base (que está mais “em contacto com a realidade”) até ao topo, e as decisões descem desde o topo até à base, às “células”.
Em tais circunstâncias, a vida relacional, afectiva e emocional dos membros de uma célula fica substancialmente condicionada: o colectivo encontra-se muito fechado sobre si mesmo e protegido por essa barreira de isolamento que se cria entre “eles” e “os outros”; a adesão à ideologia ou linha política do partido constitui um factor de coesão interna essencial, funcionamento tanto mais eficazmente quanto mais aquele for minoritário (embora plausível) na sociedade e as suas posições a fracturem de maneira contundente; esta “fusão” e unanimismo são facilitados por mecanismos simbólicos vários que criam nos aderentes a ilusão de que cada um deles é um actor importante na organização e na propagação dos “ideais”, o que alimenta a auto-estima; mas, simultaneamente, o receio de “cair em desgraça” cria facilmente climas de suspeição que podem tornar-se irrespiráveis e “atitudes estratégicas” potenciadoras de delações ou de inibição de participação, franqueza ou confiança. Estamos, pois, próximos de uma militância de tipo maçónico ou religioso (mas sem receio de uma sanção divina) e de uma organização apta a sobreviver mesmo em condições sociais adversas, como acontece quando ela é objecto de banimento ou de perseguições políticas.
Por último, o “grupo” é, comparativamente às anteriores, a estrutura organizativa mais “fluida” e informal, também porventura a menos eficaz, em termos do balanço “input-output” que pode fazer-se entre os recursos aí consumidos (tempo, dedicação, trabalho, experimentação falhada de novos membros, etc.) e os resultados produzidos pela sua acção colectiva que podem ser percepcionados e recebidos no exterior do grupo pelas pessoas comuns ou o meio específico sobre o qual se foca a sua acção. Mas é seguramente a forma de agremiação de pessoas mais natural e espontânea, aquela onde cada qual se sente verdadeiramente ele, se sente bem consigo e com os demais… até ao dia em que o grupo “rebenta”, se cinde, perde o indivíduo liderante ou, simplesmente, o participante perde o gosto de continuar nele. Daí a sua duração ser muitas vezes curta, a sua composição numérica ser variável, em função dos que porventura vão entrando e saindo – mas não instável, porque o grupo, embora parecendo (e às vezes tornando-se mesmo), não é um mero “grupo de amigos”. Este, existe por si próprio apenas pelos laços afectivos ou de ideias comuns que existem entre os seus membros. Pelo contrário, o “grupo” – seja político ou dirigido para fins sociais, culturais, desportivos, etc. – existe em função de um determinado objectivo que aquele conjunto de pessoas se propõe atingir ou realizar em colectivo, pois que o mesmo não seria possível (pelo menos na mesma dimensão) obrando cada um por seu lado, sozinho. Mas, a partir daqui, o “grupo” tende a funcionar como um grupo de amigos, sendo plástico na divisão de tarefas internas e flexível na definição de metas e técnicas de acção.
Sendo essencialmente um espaço de interconhecimento pessoal, o grupo pode ser constituído apenas por meia-dúzia de indivíduos ou atingir uma escassa vintena. Mais não é possível, sob pena de perder as suas características e mudar de natureza; isto porque a personalidade própria de cada membro tem de ser reconhecida e plenamente aceite e respeitada por todos os outros. Tal não significa, porém, que se trate de uma unidade fechada ou unanimista. Pelo contrário, o “grupo” está permanentemente aberto ao exterior e aí reside uma das suas riquezas mas também a correspondente fragilidade: as clivagens ou conflitos existentes na sociedade (posições políticas, modas culturais, etc.) podem repercutir-se rapidamente no seu interior e afectar a sua coerência ou mesmo a sua existência. E é-lhe inerente uma certa tensão interna, uma “discussão” viva entre os seus membros que, quando deixa de ser factor de dinamismo para a acção colectiva, pode levar à sua dissolução a curto prazo, pois nenhuma “obrigação” exterior ou superior intima os membros a manterem-se unidos conta a vontade e o desejo de cada um deles. O “grupo de afinidade” dos anarquistas de há um século atrás (na acção política) ou o “grupo de garagem” dos jovens “rockistas” (na produção musical contemporânea) são dois dos melhores exemplos do “grupo”, enquanto estrutura de acção/organização que aproveita ao máximo as potencialidades criativas e de realização dos indivíduos modernos, e outros exemplos existirão na actualidade de campos de actuação e modalidades de funcionamento que raramente são conhecidos e divulgados, devido à sua atomização e “instabilidade”.
Justamente por causa disto, para remediar os parcos limites da sua influência sobre a sociedade, imaginaram alguns determinadas formas de cooperação inter-grupal. Na acção política ou onde a questão do poder social se coloca – com uns a sobreporem as suas ideias e interesses aos dos outros, supostamente seus pares –, desenvolveu-se o modelo do federalismo, entendido como uma forma de cooperação livre e igualitária que multiplica a acção local dos “grupos”, com o “princípio da subsidiariedade” a prevalecer sobre as ideias de concentração e de escala. Uma parte do sindicalismo trabalhador nos países latinos organizou-se inicialmente sob este modelo, tal como o movimento do cooperativismo de consumo. Mas o melhor exemplo de aplicação da ideia federalista no terreno social foi talvez o do movimento desportivo que, ainda hoje, se organiza formalmente na base de “associações regionais” a que aderem voluntariamente os clubes (aqui, o equivalente funcional dos “grupos”), as quais constituem a “federação” nacional (de cada modalidade de prática desportiva), que, por sua vez, instituíram um dia a federação internacional correspondente (que organiza as competições mundiais, fixa regras comuns para todos, etc.) e, teoricamente, a poderiam dissolver quando deixasse de ser precisa. Ou seja: o modelo organizativo do “bottom-up”, construído “de baixo para cima” (como a Europa política anda a tentar fazer-se).
Porém, aquele é também um exemplo elucidativo da perversão que pode frustrar qualquer modelo quando a lógica do poder prevalece sobre os objectivos e necessidades sociais. Nos clubes desportivos, como em outros domínios, o que vemos hoje são sobretudo casos de personalização e consolidação do poder do líder, apoiado numa clique ou numa vaga populista (designando um “adversário a abater”) e muitas vezes próximo ou disponível para práticas de corrupção.
De facto, não existem “modelos ideais” e (com excesso de pessimismo) pode dizer-se mesmo que “tudo o que é humano é corruptível”. Mas também tudo o que é humano é capaz de constantemente reagir contra esse estado de coisas e de inventar e experimentar novas soluções construtivas que respeitem a esfera de autonomia e a dignidade de cada um e, ao mesmo tempo, atendam às condições específicas da vida em sociedade, no seu tempo.
JF / 24.Nov.2014

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Grandes mudanças políticas

O termo mudança – sobretudo na esfera política – está um tanto abastardado pelo uso excessivo que dele têm feito os agentes governativos e os que se candidatam a substituí-los. Promete-se mudar para conquistar votantes para as próximas eleições ou adeptos para uma nova força de oposição ao statu quo. Realçam-se as mudanças realizadas no decurso de um mandato electivo por parte de quem as executou. Contestam-se as mudanças “ilusórias” dos adversários para reclamar “reais” mudanças no Estado ou na sociedade, na economia ou na educação. Etc.
Quero aqui afastar-me deste tipo de alterações, não porque as menospreze mas para marcar a diferença com o que me proponho designar por “grandes mudanças políticas”. E, ao utilizar esta expressão, refiro-me a alterações profundas dentro da ordem constitucional de um Estado, mudanças no regime político que o rege ou reconfigurações na delimitação territorial/populacional de uma nação.
Obviamente, os casos de actualidade que motivam esta crónica referem-se ao processo de consulta popular referendária que ocorreu na Escócia em Setembro passado, à semelhante aspiração independentista da Catalunha ou do País Basco, à latente desagregação da Bélgica flamenga, e também às crises nacionais que têm vindo a ocorrer ou se desenham no Leste europeu em territórios do antigo império russo (e “soviético”) ou da sua “zona de influência” e, mais longinquamente, a manifestações irredentistas que, de tempos a tempos, têm assolado certas regiões de África e agora o Próximo Oriente.
O problema que está geralmente na origem destas pulsões autonomistas e independentistas é que os estados políticos, com soberania (teoricamente total) sobre certas áreas territoriais (e a população que “está lá dentro”) foram uma construção histórica (datada), ditada por razões de força militar ou diplomacia e frequentemente em descoincidência com as características culturais dos habitantes (etnia, língua, religião, tradições) e com os seus sentimentos de pertença, oposição ou exclusão de uma determinada comunidade. Mas história é história: não se pode modificar o que foi feito, e ela pesa ainda e sempre sobre nós. Como aquilo “de forte” que nós façamos hoje irá pesar sobre os nossos descendentes.
Em certos casos, essa integração forçada às mesmas leis e ao mesmo poder central teve efeitos benéficos, superou as clivagens internas e acabou por forjar uma identidade nacional que se tornou “natural” e indiscutível para a esmagadora maioria do povo. Será, entre outros, o caso de Portugal, malgrado o facto de este povo só ter tomado verdadeira consciência política de si numa fase tardia da sua história, talvez a partir da segunda metade do século XVII – já que até aí apenas fora rebanho pastoreado pelas classes nobiliárquica e religiosa –, quando se começou a desenhar um Estado-nação, consciente das ameaças do vizinho espanhol e desejoso de aproveitar as privilegiadas posições que ainda detinha no mundo, perante as sucedâneas expansões marítimas de holandeses, ingleses e franceses e também pelos interesses externos a proteger no Mediterrâneo por parte dos estados católicos face ao império Otomano. Mas, apesar de todos os erros (inevitáveis ou não), essa consciência colectiva saiu reforçada e tornou-se finalmente actuante com o Constitucionalismo oitocentista e, depois, com a República. 
Foi também esta perspectiva que guiou algumas elites no período da Modernidade a forçarem a constituição de novos estados “a régua e esquadro”, tal como aconteceu com a herança da partilha colonial deixada aos emancipalistas, independentistas e nacionalistas africanos.
Porém, em alguns outros casos, as culturas nacionais amarfanhadas dentro de um estado multi-nacional puderam resistir e hoje, perante alguns sinais de crise do funcionamento das democracias representativas, onde avultam as insuficiências das suas respostas perante questões eminentemente globais (economia, comunicação e cultura, migrações, ciência, ambiente natural, etc.), elas estão a vir muito fortemente à superfície e a procurar formas mais explícitas de reconhecimento das suas identidades. Por vezes também a tirar desforço de humilhações passadas.
Quando está em causa uma mudança política ou cultural de fundo na ordem interna é admissível que a decisão seja posta directamente nas mãos dos cidadãos. No nosso caso, tivemos há anos referendos sobre a regionalização e sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez (com resultados diversos) mas, a despeito da reclamação de uns tantos, nunca se perguntou ao eleitorado acerca da nossa pertença à União Europeia. Perguntarão agora, se se puser efectivamente a questão da saída do Euro?
Apesar da tradição e efectividade dessa forma de democracia directa num país como a Suíça, há fortes razões para limitar e condicionar o recurso a este modo de decisão colectiva. Além da opinião muito entranhada no juridicismo político de que “os Tratados não se referendam” (pela sua complexidade técnica e pela desautorização que podem trazer para os governos), as posições dividem-se claramente quanto à aprovação referendária das Constituições ou de alterações mais significativas ao texto constitucional. E julgamos que o principal óbice deste processo de decisão é criar-se uma oportunidade para as pessoas se manifestarem a favor ou contra o partido ou coligação no poder, com a opção do eleitor a acabar muitas vezes por ser determinada mais por essa circunstância do que pelo problema em debate e, no caso da derrota da posição governamental, haver agora uma boa razão para reclamar a sua demissão. Mas também se recorda que a consulta referendária tem sido usada com frequência por regimes ou líderes autoritários para obter uma legitimação definitiva do seu poder, mediante o recurso a uma pergunta capciosa (que suscita imediatamente o “sim”) ou o aproveitamento de uma conjuntura emocional que lhe seja particularmente favorável.
Apesar destes senãos, há matérias que mereceriam sempre ser decididas ou confirmadas pelo povo, quando está em causa uma grande alteração da ordem política. Neste sentido, têm razão os monárquicos que gostariam de ver levada a referendo a questão do regime político em Portugal – igualzinha à razão que conduziu recentemente em Espanha a manifestações de rua reclamando uma consulta popular sobre o prosseguimento da Monarquia ou o restabelecimento da República.
No entanto, deveria ser mais reflectido e discutido se uma decisão democrática normal – “por um voto se ganha, por um voto se perde” – é adequada para dirimir uma questão dessa magnitude, que envolve uma responsabilidade “definitiva” (quero dizer: de longo prazo) para todo um povo.
Este problema processual agrava-se no caso de decisões referendárias relativas à partilha ou integração de territórios “estadualizados” e respectivas populações. Recorda-se que, logo após o 25 de Abril de 1974, atribuía-se ao general Spínola a intenção de referendar a “questão colonial”, entre a solução das independências ou a manutenção de um esquema integrativo, de tipo federal ou confederal. Mas, nesse caso (como em outros, por exemplo, actualmente, a Escócia, a Catalunha ou o País Basco), quem deveria pronunciar-se? Toda a população do então Portugal-pluricontinental? Ou apenas os habitantes de cada um dos territórios em causa? E não é impedido imaginar que a questão se ponha um dia – quem sabe? – em relação aos Açores ou a Madeira, arquipélagos sem os quais Portugal perderia toda e qualquer relevância que ainda possa ter na cena internacional. Podemos mesmo sonhar um pouco mais alto, perguntando quem deveria decidir se, em sentido contrário, o povo de Cabo Verde viesse a manifestar o desejo se (re)unir a Portugal por laços políticos federais?
De facto, não parece que este tipo de magnas decisões se deva resolver por essa forma tão simplificada e cheia de armadilhas. Olhando para a aparente ligeireza com que o actual governo do Reino Unido aceitou a realização desse referendo na Escócia, ocorre dizer, desde logo e em primeiro lugar, que seria sempre preciso criar uma legislação processual completa a tal respeito: Quem pode solicitar o referendo? Quem pode votar? Que tipo de pergunta deve ser formulado? Que consequências jurídicas imediatas advêm da eventual separação? Que período “de nojo” afasta uma eventual nova tentativa, em caso de resultado negativo à pretensão independentista?
Depois, parece-nos que seriam aqui justificadas precauções adicionais para reduzir o risco de um resultado “pouco expressivo”, “irreflectido” ou “perturbado por factores estranhos” determinando uma separação irreversível. Assim, não chocaria a existência de um quórum de aprovação da proposta secessionista mais elevado do que a mera maioria simples (como acontece para certas leis internas mais importantes), fixando-o porventura numa maioria qualificada de três-quintos (60%). E, finalmente, julgamos que seria também avisado que a referida independência só fosse de facto alcançada na sequência de um segundo referendo ganho (naquelas condições), realizado (por hipótese) dois anos após o primeiro. Evidentemente que estas disposições cautelares seriam vistas por muitos como dispositivos favorecedores de uma derrota do “Sim” e da manutenção do statu quo. Mas, se se quer travar uma “aventura”, é mesmo disso que se trata: na dúvida, mantém-se o existente. Lembremo-nos o que custou a guerra civil que ensanguentou os Estados Unidos em 1861-1865.
Mesmo o processo inverso de “integracionismo” (por exemplo, amanhã, da Ucrânia-Leste na “mãe”-Rússia) deveria ser respaldado por procedimentos cautelares deste tipo, apesar da natureza diferenciada do fenómeno, por estar intimamente ligado a uma secessão. Veja-se o caso do Sarre no pós-guerra, a quem foi dada a oportunidade de escolher o seu destino após uns anos de reflexão, acabando (re)integrado na Alemanha.
Mas também parece evidente que o “unitarismo” que preside à organização de vários estados é hoje inaceitável por parte de algumas culturas nacionais neles integradas e que, no mínimo, deverão acabar por evoluir para formas adequadas de federalismo, pois arriscam-se a ver ali erguidas novas bandeiras de independência.
A situação actual da Catalunha levanta grandes preocupações porque, além do problema em si mesmo, interferem igualmente as lutas políticas partidárias (sobretudo no Partido Popular, governando em Madrid, mas como péssima cotação na opinião pública e abalado por escândalos vários; e entre os partidos catalanistas, maioritários na Generalitat e outros órgãos regionais mas em tensa competição entre si, e também com histórias de corrupção à mistura), o sentimento anti-partidos (minoritário mas em progressão) e o jogo das regras legais que, sendo importantes para disciplinar os apetites de poder, também constituem muitas vezes imbróglios que só suscitam exasperação e “golpes de força”. Veremos até que ponto os decisores políticos serão capazes de gerir a questão de modo negocial sem frustrar os genuínos sentimentos das populações, ou se “a rua” acabará por os impelir para gestos drásticos de exclusão e afrontamento.    
Vejamos agora a grande mudança implicada na luta ideológica entre capitalismo e socialismo. Quando ruiu o “império socialista”, pensei, francamente, que tais acontecimentos iriam constituir uma lição de consequências políticas, históricas e científicas absolutamente extraordinárias. Depois dos efeitos transformadores da industrialização e do desenvolvimento económico; dos sentidos contraditórios da “rebelião das massas” que tão fortemente marcou o século XX; das destruições e ameaças aniquiladoras das armas de alta tecnologia, em particular as nucleares; do fundamental processo de descolonização; dos perigos ambientais de que todos começaram a tomar consciência a partir da década de 70; e do espectro de comunicação universal desenvolvido no último quarto-de-século – depois de toda esta riquíssima experiência histórica desenrolada no quadro de uma mesma vida, pensei que a derrocada do marxismo-estalinismo abrisse um enorme debate e esforço de revisão de pensamento, sobretudo na política, mas também nas ciências sociais. É que, se aquele sistema fracassou, ele não foi propriamente derrotado, já que assentava sobre três pilares, dois dos quais eram igualmente pilares do sistema capitalista ocidental que justamente visava combater e ao qual se antepunha como alternativa. Com efeito, a industrialização e desenvolvimento das forças produtivas, por um lado, e a superioridade dos poderes e da razão de Estado, por outro, constituíam fundamentos essenciais dos dois sistemas, cuja competitividade ainda serviu para os reforçar. A oposição capitalismo-socialismo foi, pois, em grande medida, uma oposição de competição ou concorrência, ganha pela maior aptidão demonstrada por um dos competidores num determinado momento.
Apenas no que respeita ao terceiro pilar existia, de facto, uma diferença de natureza e qualidade entre os dois lados: refiro-me ao sistema ético e de valores morais. Enquanto o capitalismo era suportado por referências judaico-cristãs, profunda e longamente trabalhadas por valores de individualidade, liberdade, responsabilidade, pluralismo e respeito mútuo, o socialismo sacralizou a razão da ideia tornada força, da bondade dos objectivos finalistas (ao Homem, ao seu pensamento e à sua vontade, tudo é acessível e possível) e da não-limitação interna das suas acções (os fins justificando qualquer meio para a eles chegar).
Parece-me, porém, que seria errado pensar que o sistema moral do socialismo nascera como uma contraposição frontal ao do pensamento moderno associado às revoluções burguesas. Ele é, sim, uma das orientações lógicas derivadas do próprio pensamento moderno. Mas o seu desenvolvimento e o seu sucesso, no século XX, deram-lhe um lugar e uma predominância novas e excepcionais. Por isso, o desmoronamento do “socialismo real”, deveria ter conduzido ao reexame e à crítica de tal derivação do pensamento moderno. Neste sentido, em termos políticos, as doutrinas socialistas democráticas, por uma banda, e as anarquistas e libertárias, por outra, deveriam ter-se sentido obrigadas a um profundo exercício de auto-exame crítico, para expurgarem de si aquilo que de comum partilhavam com o comunismo, enquanto património comum de toda uma esquerda socialista.
A direita política teve razão ao acusar o socialismo democrático de “autismo interessado”, perante o desabar do Leste. E o socialismo democrático reagiu exclusivamente em termos tácticos, tanto quando afirmou ser, também ele, um vencedor do confronto totalitarismo-democracia (o que é inteiramente verdade), como quando foi fazendo a sua conversão à economia de mercado em doce e por razões de realismo prático – precisamente para evitar expor-se demasiado em termos políticos, perante a direita, se acaso tivesse feito uma rigorosa avaliação doutrinária de toda a sua orientação. Por seu lado, o libertarismo tem mais desculpa, por não ser, exclusiva e essencialmente, uma corrente de pensamento de esquerda, mas antes uma tentativa – porventura baldada ou utópica, mas interessante e generosa – de superação desses dois contrários, procurando uma realização máxima de liberdade e de igualdade no desaparecimento dos instrumentos de dominação política inscritos no Estado. Mas, na realidade, o activismo dos anarquistas não tem dado as mínimas mostras de entender tal necessidade, mantendo-se aferrado a referências do passado e incapaz de compreender o mundo actual.
Nesta época em que a luta política do chamado terrorismo islâmico assume as formas bárbaras e primitivas a que vimos assistindo, e que no Leste europeu se praticam manobras de guerra, propaganda e manipulação que julgávamos já ultrapassadas nesta região, toma especial significado o modo pacífico e democrático como os sentimentos populares nacionais se têm até agora expressado na Escócia e na Catalunha, sem nada de comum com o vanguardismo armado de “etarras” ou do IRA, ou as manobras de força em curso na Ucrânia. Apesar de todos os seus limites e condicionantes, é um caminho que deve ser saudado e encorajado.
JF / 12.Nov.2014

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